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A principal razão para não conseguirmos prever uma crise econômica é que temos pouco conhecimento causal e preditivo sobre elas. Em dias incertos como essa semana que estamos, é importante saber disso para não cair em falsas promessas de gurus na mídia. Pois bem, mas vamos ao nosso problema. O que “não ter conhecimento causal e preditivo” quer dizer?

Considere por exemplo um historiador especialista no tema da Segunda Guerra Mundial. Ele domina toda a sequência de eventos políticos que levou à guerra. Se perguntado sobre a situação da Polônia, sabe responder como ela estava inserida no conflito, os antecedentes diplomáticos com a França, Alemanha, Rússia, enfim, nos mais sutis detalhes. Agora pergunte-o sobre o papel da Polônia em um possível conflito futuro com a Alemanha de hoje ou a Rússia de hoje e é evidente que ele não terá como dar uma resposta satisfatória. Isso não é uma falha dele. O ponto é que não foi isso que ele estudou, não é sobre isso que ele tem conhecimento.

O conhecimento que esse historiador tem é o que podemos chamar de descritivo e explicativo. É descritivo porque tem como objetivo descrever acuradamente os fatos envolvidos, está apoiado em documentos históricos e foram verificados por outros especialistas da área. E é explicativo porque suas interpretações de causas e efeitos procuram fornecer a melhor explicação possível para a sucessão de eventos que descreve, ante explicações alternativas. No debate entre historiadores, podem aparecer novos documentos que alterem a base de fatos relevantes ou novas teorias que alterem qual é a melhor explicação para os eventos. Porém, prever resultados não faz parte do desafio e não há como testar empiricamente uma série de interpretações históricas importantes para a narrativa.

A maior parte do conhecimento científico que temos sobre grandes crises econômicas é como esse conhecimento do historiador profissional, descritivo e explicativo.

Conhecimento do tipo causal e/ou preditivo é diferente. Considere por exemplo um conhecimento preditivo leigo, como “quanto mais o céu está cheio de nuvens escuras, maior a chance de chover”. Qualquer pessoa poderá facilmente concordar com a previsão acima. Porém a previsão é completamente genérica, não chega nem a arranhar a superfície de quão complexo são os fenômenos do clima. Mas isso não chega a ser um problema, porque ela não quer descrever o fenômeno com detalhe, ela só quer prever. Ela também não tem a ambição de estabelecer nenhuma relação de causa e efeito. Basta que seja mais provável que chova onde houver muitas nuvens escuras do que quando não houver, e terá servido ao seu propósito.

Temos algo análogo a “nuvens escuras” para prever grandes crises econômicas? Nada provado. Há quem destaque uma curva de juros invertida no mercado de títulos do tesouro dos EUA como preditiva de uma crise. Mas há casos em que isso não foi necessário e de toda forma só serviria para crises internacionais ou nos EUA. Há autores que defendem outros indicadores como preditores de crises, mas não espere algo que consiga dizer em que mês vão ocorrer, nem em que ano. Na maior parte dos casos, quem aparece como guru que “previu a crise” é alguém que falava todos os anos que ela viria até que uma hora ela veio. Para isso só é necessário o acaso, não há conhecimento real por trás.

Por fim, há teorias causais e conhecimento de causa e efeito. Considere por exemplo uma afirmação causal simples: “um aumento ou melhora da educação causa um aumento da renda”. De modo geral temos fortíssimas evidências de que isso é verdadeiro. Ainda assim, muitas vezes saber disso não será útil para prever a renda de nenhuma pessoa individualmente, nem será muito útil para explicar por que uma pessoa tem a renda que tem. Nesse caso a dificuldade de prever e de explicar decorre do fato de que a renda final é resultado não apenas do nível educacional, mas de um conjunto grande e relevante de vários fatores. Onde estudou, que região vive, com o que trabalha, como foi criado, o bairro que mora, o talento… dentre muitos outros. Incluindo, nesses vários outros, a sorte ou o puro acaso de ter achado uma ótima oportunidade de trabalho ou de criar uma empresa, ou de ter azar de nunca ter achado uma oportunidade média. Em geral, quanto mais causas diferentes e relevantes um evento têm, menos o conhecimento de uma dessas causas permitirá que possamos prever o resultado final.

E é por isso que não temos muito conhecimento causal sobre crises. Sabemos que elas têm muitas causas diferentes e sobrepostas. Algumas causas são de longo prazo, outras são uma sequências de eventos que podem se desencadear em semanas, dias, horas. A relação de cada causa com a outra é difícil de se estudar porque as crises nunca e repetem exatamente da mesma forma. Talvez um dia ocorra uma nova guerra mundial, mas ela será muito diferente da Segunda Guerra. São eventos praticamente únicos. Por fim, além da realidade de ter muitas causas, é razoável supor que o puro acaso desempenhe um papel relevante em explicar por que uma crise ocorreu quando ocorreu.

São esses os problemas de fundo que fazem com que a maior parte do conhecimento que temos sobre crises não ser do tipo preditivo ou causal. Sabemos muito sobre a crise de 2008, sobre a crise de 1929 e várias outras crises, mas as teorias que temos buscam descrever o que ocorreu e tentam fornecer a melhor explicação para algumas sequências importantes de eventos, ante explicações alternativas. Não é claro se faz sentido generalizar isso para outras crises, e mesmo caso se tente fazer isso a margem de erro continuaria tão grande que não seria muito diferente de um chute.

2 Responses to “Não é possível prever uma crise econômica. Mas por que?”

  1. Fernando Clemente da Rocha

    Professor Thomas Conti, sobre essa ausência (ou pelo menos escassez) de “conhecimento causal e preditivo”, envolvendo crises econômicas, talvez não seria menos aguda nos mercados financeiros? Faço essa observação a propósito de um livro de David M. Smick que li há alguns meses (“O Mundo é Curvo”. Rio de Janeiro: BestSeller, 2009), escrito na esteira dos acontecimentos da crise das subprime (2007/2008) nos EUA que se espalhou para o resto do planeta. Nele, o autor fala do sistema financeiro globalizado como criador de “um perigoso oceano de dinheiro”, algo pernicioso que em sua visão coloca os países “crescentemente em risco de vivenciar novas calamidades financeiras que tragam consigo uma espiral viciosa de destruição e sofrimento” (p. 19).

    Portanto, não diria na economia real, mas talvez nesse âmbito (os mercados financeiros globalizados, concentrados), será que não existem evidências suficientes para a formação do conhecimento de causas e efeitos, aptas à formulação de teorias causais? Ou seja, a se considerar os mesmos fatores que deflagraram essa crise em particular (excesso de crédito hipotecário em um grande mercado como o americano), se repetidos em algum outro momento futuro, não seria preditivo da ocorrência de uma outra, ainda que em dimensões desconhecidas? Enfim, são questões bens instigantes, daí a excelente oportunidade do vosso texto, mais ainda nesses tempos bicudos de Covid-19 com efeitos nefastos na economia mundial.

    • Thomas Conti

      Olá Fernando, não, não permite. A começar, repare que nos trechos citados não há nenhuma informação causal, nem preditiva. São afirmações compostas quase exclusivamente por adjetivos, “perigoso oceano”, “calamidades”, “espiral viciosa”, “destruição e sofrimento”. São termos gerais com significados muito abertos a diferentes interpretações. Se formos generosos e permitirmos que seja entendido como uma previsão científica afirmações genéricas como essas, há muitas outras tão genéricas quanto ou até menos que vão conseguir “prever” uma crise. Só não vão saber nem quando, nem por quais causas, nem como fariam para evitá-las. Que no fundo é o que realmente importaria e o que não conseguimos responder.

      O problema das crises é que independente de quaisquer teorias, são eventos raros e praticamente únicos. Uma das únicas coisas que sabemos da próxima crise, como da próxima guerra, é que não será como a anterior. A base da ciência é estudar os padrões regulares. Crises são quase por natureza impermeáveis a esse tipo de investigação e intervenção. Mas claro, nunca vão faltar profetas para dizer que previram etc. Mas são sempre palpites e não mais do que isso.

  Categoria: Filosofia

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