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Nas últimas duas semanas as redes sociais brasileiras foram tomadas por discussões fervorosas quanto à ideia de apropriação cultural. O tema foi trazido à tona após um relato feito pela jovem Thauane Cordeiro em 2 de fevereiro de que fora abordada por um grupo que pedia que retirasse o turbante que estava usando, pois estava “se apropriando” da cultura deles. A jovem usava o turbante pois não tinha cabelo devido ao tratamento contra o câncer. Previsivelmente, houve uma inconformação geral com o caso e argumentos acalorados foram levantados.

Este post não tem nenhum interesse em entrar nessa polêmica e seu autor tampouco vê qualquer relevância em expressar publicamente sua opinião sobre o caso (minha opinião é irrelevante).

Contudo, desde que o caso ocorreu, tentei encontrar discussões bem fundamentadas sobre a origem da ideia de apropriação cultural e não estava conseguindo encontrar mais que referências a blogs ou textos de jornais. Foi aí que resolvi cavar mais fundo e investigar a história desse conceito, procurar os primeiros textos que fazem menção a ele e verificar como seu uso mudou ao longo do tempo.

Assim, este post não pretende nem dar minha opinião sobre a polêmica do momento, nem explicar o que é apropriação cultural, nem falar o que eu penso de tudo isso. Trata-se apenas de um historiador compartilhando o que sua curiosidade encontrou com possíveis interessados na história, fontes, textos e autores que mapeou nessa investigação.

As referências foram selecionadas obedecendo três critérios. Em ordem de prioridade, são eles: (1) cronológica (quanto mais antigo, melhor); (2) impacto na literatura posterior (quanto mais citações o texto recebeu, melhor); (3) semelhança em conteúdo (quanto mais próximo do significado contemporâneo de apropriação cultural, melhor). Esse mapa é razoavelmente breve e não-exaustivo, mas acredito que possa ser útil para quem quiser investigar a teoria ou prática por trás dessa ideia, seja para apoiá-la ou criticá-la. Espero que as referências que se seguem ajudem quaisquer interessados a elevar o nível do debate.

1. Ocorrência do conceito de Apropriação Cultural ao longo do tempo

O conceito de apropriação cultural é de uso muito recente, como ilustrado pelo gráfico abaixo. Só no início dos anos 80 as referências começam a aparecer, e é da segunda metade da década de 80 em diante que a ideia ganha força própria e passa a aparecer em mais textos.

Esse interesse que já é recente na academia da língua na qual se originou (inglês), é ainda mais recente em língua portuguesa. Uma rápida passada pelos dados dos Google Trends de 2004 até hoje nos mostra como variou o interesse (buscas no google) pelo termo:

O surto de interesse em tempos recentes no Brasil explica a ascensão vertiginosa da linha vermelha do gráfico. Em língua inglesa, o pico de interesse ocorreu em abril de 2016, com uma polêmica devido ao cantor Justin Bieber ter feito dreads.

Enfim, esse segundo gráfico mostra apenas quão recente é o interesse pelo tema pela população em geral. O restante deste texto pretende apontar quais foram os textos e autores responsáveis pelo uso da ideia de apropriação cultural que explica o primeiro gráfico, que mostra ocorrências da palavra em livros e artigos publicados.

2. A “pré-história” do conceito de Apropriação Cultural (1960-1986)

“Pré-história” não é um bom termo, porém cumpre a função de destacar que nesse período, embora hajam menções à “apropriação cultural”, elas ou têm um significado mais ou menos distinto do contemporâneo ou não são usos conscientes de um conceito próprio. Ainda assim, muita coisa interessante em torno do tema foi escrito que pode iluminar pontos do que virá depois.

Em 1968, Pierre Bourdieu no artigo Éléments d’une théorie sociologique de la perception artistique menciona mais de uma vez a ideia de “apropriação da cultura” (appropriation of culture). No entanto, o sentido que Bourdieu dava para essa ideia é diferente do que esta em voga hoje como apropriação cultural. No artigo ele utiliza apropriação da cultura para se referir  à “competência necessária para perceber a arte”. O primeiro texto relevante que encontrei no qual consta explicitamente o termo cultural appropriation também fala sobre Bourdieu. Em Pierre Bourdieu and the sociology of culture: an introduction (1980), Nicholas Garnham e Raymond Williams utilizam apropriação cultural  para falar sobre os elementos culturais que são também uma competência ou capital social necessário para desempenhar funções de classe inerentes a uma dada profissão, como médicos, advogados, professores, etc., que precisam reproduzir certa linguagem e etiqueta próprias para trabalharem.

Mas também em 1980 encontramos um curtíssimo texto que não só utiliza o termo, como ainda o faz dentro de um contexto de problemas similares ao que vemos o termo ser empregado hoje. Nadine Gordimer, mulher sul-africana militante anti-apartheid e vencedora do prêmio Nobel de Literatura, falou sobre apropriação cultural ao refletir sobre o uso da linguagem na literatura Sul-Africana no artigo From Apartheid to Afrocentrism (1980). Segundo Nadine, o problema cultural que estavam diante era o seguinte: não havia a arte da literatura escrita na África antes da chegada dos brancos. A literatura que foi gerada na maioria dos países da África foi escrita por negros, mas na língua escrita dos colonizadores. Na África do Sul, a segregação e opressão racial fortíssimas do apartheid marginalizavam a população negra e ao mesmo tempo a cada nova geração criava brancos que simpatizavam com a luta por liberdade da população nativa. Assim, o país aparecia como uma exceção a essa regra, pois ali tanto brancos quanto negros escreviam literatura de uma perspectiva que se pretendia sul-africana, mas isso trazia suas próprias complexidades:

“A escrita negra é nativa em conteúdo mas não nos meios de expressão. Seu material é principalmente a vida dos negros em um nível de consciência que, esmagadoramente por razões políticas, não está disponível para escritores brancos. Mas seus meios de expressão nas formas literárias da poesia, do romance, os contos ou ensaios são aspectos de uma cultura importada tanto para negros quanto para brancos. A cultura não precisa ser branca para ser Eurocêntrica na África. Autores negros estão plenamente cientes disso. A maioria deles escreve em línguas europeias e, não só isso, muitos não se sentem capazes de escrever em nenhuma das outras línguas. Eu especificamente não digo “nas suas próprias” porque o compromisso incomparavelmente decisivo de escrever em uma língua europeia é um ato de apropriação cultural. Ele clama aquela linguagem também como a linguagem do próprio escritor. Brancos não foram bem sucedidos em nenhuma ação comparável de apropriação de um instrumento cultural negro ou de fato em nenhuma apropriação real da cultura negra…” (p. 47)

Vemos que o uso de Gordimer de apropriação cultural ainda antecede o significado contemporâneo, mas já está mais próximo dele. Na busca de entender o que seria uma “autêntica literatura” sul-africana, Gordimer argumenta no texto que não vê muito sentido em buscar um purismo literário e celebra que a cultura branca “já está sendo transformada aqui – pelos negros”. Mesmo que usando a língua e as formas literárias europeias, a escrita desses autores negros participa ativamente da expressão cultural, algo que “uma literatura que usa a cultura nativa puramente como um objeto, algo sobre o qual se age, seja por autores brancos ou negros, não pode fazer uma literatura realmente autêntica deste país”.

O texto de Gordimer não parece ter impulsionado nenhum debate específico sobre apropriação cultural. Praticamente não houve menção relevante à apropriação cultural na literatura acadêmica entre os anos de 1980 a 1984. Como breve nota, destaco que em 1986 o autor Syed A. Rahim falou de apropriação cultural no artigo Language as power apparatus, que também discute linguagem e poder em um contexto de tensão entre colonizadores e colonizados. Syed usa apropriação cultural em um sentido próximo do de Gordimer, argumentando como o ato de se apropriar da língua inglesa por parte dos indianos era um ato de poder e quebra de monopólio importantes na história da Índia. O texto de Syed influenciou debates posteriores sobre o uso da língua inglesa no contexto da colonização, mas não parece ter impactado nenhuma discussão sobre o sentido contemporâneo de apropriação cultural.

Já com o sentido contemporâneo, o termo aparece no artigo que fala sobre censura The other face (1985), escrito por Ian Steadman, também da África do Sul, mas dramaturgo e não escritor. Há apenas duas citações registradas feitas a esse curto texto, mas o conteúdo e um trecho em especial chamou minha atenção e acho que merece destaque aqui:

“Ao anunciar sua intenção de produzir duas peças (Dirty Work e Gangsters) em Soweto, ele foi imediatamente notificado pelas autoridades de censura que ele poderia continuar a apresentar a mais militante das duas peças em teatros como o The Laager, mas que dali em diante ele estava proibido de apresentar a peça nos vilarejos. Claramente a atual atmosfera volátil dos vilarejos, que significa uma revolução de baixa escala, é considerada como um local ‘inseguro’ para uma peça que mostra, em ação teatral dinâmica, um poeta negro sendo torturado até a morte por policiais de segurança. Que tenha sido dada liberdade para que a peça fosse realizada no Teatro Laager, no entanto, é ainda mais instrutivo. No caso dos praticantes de teatro, a apropriação cultural está se tornando crescentemente mais efetiva do que as estruturas formais levantadas pelo Publications Act. Assim, Pieter-Dirk Uys, o principal produtor de sátiras da África do Sul, e outrora nos anos 70 portador de uma reputação como o terror dos palcos, agora é virtualmente ignorado pelos censores – em contraste direto com os numerosos banimentos do seu trabalho na década de 1970. A história que até Ministros assistiram suas peças satíricas, rindo do seu retrato malicioso deles, não é meramente apócrifo.”

Nessa breve menção à apropriação cultural é marcante a semelhança com o uso e significados contemporâneos da palavra. Há um tratamento diferenciado dado a um mesmo objeto cultural, há uma ressignificação do objeto conforme o espaço que ele aparece, há um conjunto de normas formais e informais quanto ao uso que pode ser feito dele. No entanto, o uso de apropriação cultural  por Steadman provavelmente foi incidental, pois em 1985 a discussão sobre apropriação cultural mal havia começado. Em 1988, Steadman voltou a usar o termo apropriação cultural em um texto sobre a história recente do teatro Sul-Africano, mas agora sem um sentido tão parecido com o atual. Steadman diz que “Eles [os atores]  retratam cenas de conquista colonial, de exploração econômica e de apropriação cultural” (p. 26). O último texto de Steadman a citar estes dois primeiros é de 1990, ano que como veremos já existia um debate vivo, embora pequeno, sobre apropriação cultural. Embora trate de uma teoria do teatro popular na África do Sul, o termo não consta nesse último texto. Isso reforça que o primeiro uso em 1985 estava provavelmente a frente do seu tempo e não foi percebido pelo autor como um conceito próprio e novo.

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3. Aproximação ao significado contemporâneo de Apropriação Cultural (1987-1990)

Tanto os textos de 1980 quanto o curto artigo de 1985 de Steadman não parecem ter gerado um debate relevante em torno do conceito de apropriação cultural. É entre 1987 e 1990 que surge um debate com contornos mais bem definidos mediante artigo de Daniel Sherman e de Gillian Bottomley.

Em The Bourgeoisie, cultural appropriation, and the art museum in nineteenth-century France (1987), Sherman fala explicitamente de apropriação cultural e até escolhe esse nome como título curto entre as páginas do seu artigo. Vale destacar duas referências de Sherman. Uma delas é, novamente, Pierre Bourdieu. Mas não a discussão de Bourdieu que mencionei no início deste texto. Sherman faz referência ao texto La distinction: critique social du jugement (1979), onde Bourdieu argumenta sobre a desigualdade existente na capacidade de influenciar os gostos da sociedade, que deriva de diferentes acúmulos de capital cultural.

Sherman cita Bourdieu (e Maurice Crubellier, Histoire culturelle de la France, XIXe-XXe siicles [1979]) ao falar sobre a apropriação cultural praticada por museus europeus durante o século XIX. Aqui o significado já é muito similar ao contemporâneo, porém ainda lhe falta o conteúdo que explicita diferenças de cor ou etnia. Sherman fala sobre apropriação cultural da arte e formas tradicionais camponesas pelos museus, que davam àquelas peças o tom que gostariam de passar ao seu público e não uma representação do que aquelas peças significavam para quem as criou.

Seu objetivo é iniciar uma teoria sobre os museus de arte, o que inclui explicar o estranhamento diante deles e os dilemas éticos de apropriação cultural que eles envolvem. “No século XIX, a compra de um trabalho de arte tornou-se um ato simbólico de apropriação, inicialmente de uma tradição cultural a qual é dada forma contemporânea em uma pintura de museu” (p. 54). As referências das quais Sherman partiu incluem discussões sobre apropriação no sentido mais lato de propriedade mesmo, uma vez que os museus compravam (ou, no século XIX, recebiam objetos roubados) objetos de outras culturas, envolvendo “trivialização” e “comercialização” da arte apropriada.  Deixo abaixo as referências que Sherman cita no início do artigo caso alguém tenha interesse em se aprofundar:

1. Michael Dummett, ”The Ethics of Cultural Property,” Times Literary Supplement, 25 July, 1986, p. 810; Nelson Goodman, “The End of Museums,” in his Of Mind and Other Matters (Cambridge, Mass. and London, 1984), pp. 174-187; on the contemporary American situation, see Mark Lilla, “The Great Museum Muddle,” New Republic, 8 April, 1985, pp. 25-30. Little innovative work on art museums has so far come from historians; an exception is Neil Harris, of whom see especially ”The Gilded Age Revisited: Boston and the Museum Movement,’’ American Quarterly 14 (1962), pp. 545-564, and “Museums, Merchandising, and Popular Taste,” in I.M.G. Quimby, ed., Material Culture and the Study of American Life (New York, 1978), pp. 140-173.

Em Cultures, multiculturalism and the politics of representation (1987), Gillian Bottomley também se aproxima demais do significado contemporâneo das discussões de apropriação cultural.  Diz, “De fato, nenhum de nós é inocente de apropriação cultural, mas é importante examinar o modo de apropriação” (p. 6). Ou ainda, “nós precisamos estar cientes sobre o alcance das relações de poder e resistência, mesmo dentro de práticas aparentemente neutras como a música e a dança” (p. 8). Assim como Sherman, o autor discute reiteradamente o problema dos museus e antiquários e como representam determinadas culturas mudando seus significados. Bourdieu novamente aparece como uma referência determinante para a argumentação do texto. Citando Choses Dites (1987), de Bourdieu, Bottomley termina afirmando que:

“nós não podemos assumir a existência de grupos ou categorias unificadas que surgem a partir da atribuição de uma homogeneidade de condicionamento. Nem tampouco deveríamos aceitar sem questionar as várias representações culturais oferecidas por aqueles envolvidos na luta simbólica” (p. 8).

Em 1988-1989 o debate em torno da apropriação cultural começa a se ramificar. Na antropologia, as tensões do relativismo e de como representar fidedigna e respeitosamente outra cultura passam a mencionar apropriação cultural. O conceito ainda não aparece explicitado e discutido, mas o teor dos textos é muito similar às discussões contemporâneas. S. P. Mohanty em Us and them: On the philosophical bases of political criticism (1989) discute antropologia e política no campo cultural, mas repete também a problemática da linguagem no contexto da colonização que vimos em Gordimer anos antes. Ao falar sobre como o autor marroquino-francês Tahar Ben Jelloun usa tanto o árabe quanto o francês, Mohanty escreve na nota de rodapé 13:

“A relação ambivalente entre minorias escritoras contemporâneas e seu público ‘metropolitano’ é destacado no contexto das novas populações imigrantes europeias. Na que pode ter sido a primeira conferência americana sobre este assunto, ‘Europe’s New Minority Cultures’ (Cornell, Fevereiro de 1988), o assunto da apropriação cultural e da pedagogia crítica que a preveniria tornaram-se um ponto central tanto dos artigos quanto das discussões que se seguiram.” (p. 79) [O autor não fornece nenhuma outra referência dessa conferência e não consegui achar nenhuma fonte adicional sobre ela online.]

O trabalho de Mohanty teria influência posterior sobre a perspectiva do pós-colonialismo, sendo citado nos influentes trabalhos Rethinking standpoint epistemology: What is “strong objectivity?” (1992) de Sandra Harding, e Culture and Imperialism (1993), de Edward Said, dentre muitas outras obras. Outras trabalhos desse período na antropologia tocavam nessa problemática, como The Predictment of Culture (1988) do historiador, literário e antropólogo James Clifford, que fala sobre etnografia, linguagem, museus e representação (a resenha deste livro escrita em 1989 por Thomas Beidelman toca no ponto da apropriação de cultura). Mas a antropologia não foi a única a discutir a apropriação cultural. Em paralelo, continuavam as discussões sobre o uso de outras culturas feito por museus (Carlin, 1988, da perspectiva do direito; Sherman, 1988, sobre arte e história) e teatros (Hagedorn, 1989Scolnicov e Holland, 1989).

Em 1990, Harmut Lutz em seu artigo Cultural appropriation as a process of displacing peoples and history sistematiza um debate que vinha acontecendo em discussões pontuais no Canadá sobre a forma como a cultura indígena dos nativos da região vinha sendo sistematicamente apropriada pela população de descendência europeia. A diferenciação que ele faz sobre o tipo de apropriação cultural que ele quer discutir é praticamente a que se entende hoje ao se utilizar o conceito de apropriação cultural:

“Várias formas de intercâmbio cultural, incluindo tipos de apropriação cultural, continuam a acontecer sempre que diferentes culturas se encontram e interagem entre si. Se não fosse assim, este artigo não poderia ter sido escrito em inglês, nem o povo das planícies poderia jamais ter montado em cavalos, nem minha família e eu poderíamos ter em qualquer momento comido uma batata, nem autores Nativos poderiam ter escolhido o inglês como meio de expressão. Esse intercâmbio de ideias e práticas, no entanto, não é uma questão que está em discussão aqui. O que é um ponto de discussão aqui é o tipo de apropriação que acontece dentro de uma estrutura colonial, onde uma cultura é dominante politica e economicamente sobre a outra e a governa e explora. Mais especificamente, é o tipo de apropriação na qual aspectos da mesma cultura colonizada são apropriados pela cultura dominante, enquanto ao mesmo tempo todos os traços da sua origem são negligenciados ou deslocados. É um tipo de apropriação que é seletiva, que desconsidera a origem ou autoria, e que é ahistórica na medida que exclui do seu discurso o contexto histórico, especialmente, aqui, a história das relações entre nativos e não-nativos.” (p. 168)

Para quem quiser se aprofundar na história dessa discussão, o artigo de Lutz cita diversas fontes de artigos de jornal sobre esse tema que antecederam a discussão dele. Essas fontes provavelmente são importantes para uma história completa do conceito de apropriação cultural, porém como havia alertado fiz essas pesquisas em menos de 10 dias com o tempo livre que tinha e não abri artigo por artigo que ele cita para verificar. O debate sobre apropriação cultural segue fortíssimo no Canadá e envolve filósofos, juristas, antropólogos, arqueólogos, dentre outros.

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4. O conceito de apropriação cultural atinge seu significado contemporâneo (1991-hoje)

Finalmente chegamos no período onde o significado de apropriação cultural atinge a forma contemporânea. Em “Logiques métisses”: Cultural Appropriation and Postcolonial Representations (1992), Françoise Lionnet insere o conceito dentro das discussões do pós-colonialismo. Discussões sobre auto-determinação indígena, turismo, nacionalismo, dentre outros. Na Austrália e no Canadá a existência de uma população nativa culturalmente influente motivaram diversos acadêmicos a escrever sobre as interações culturais. A canadense Rosemary Coombe publicou um influente artigo sobre cultura indígena e o direito de propriedade intelectual, The properties of culture and the politics of possessing identity: Native claims in the cultural appropriation controversy (1993).

Mas o trabalho dela não foi o único a tratar do tema do ponto de vista jurídico naquele ano. De 1993 em diante, há um crescimento exponencial de artigos que tratam do tema da apropriação cultural. Se voltarmos ao gráfico que coloquei na Parte 1, fica evidente a grande multiplicação da literatura sobre o tema. Os países que aparentemente mais o discutiram seguem sendo de língua inglesa, em especial o Canadá e a Austrália, que são mencionados em mais de 50% da literatura no mínimo até 2003 (a imagem destacada deste texto que inicia este texto refere-se a uma polêmica sobre a Miss Canada utilizando vestes de nativos canadenses).

Considerações Finais

Acompanhar tudo que foi publicado sobre o assunto de 1993 até hoje tomaria muito tempo e não tenho condições de fazer isso, mas espero que a trajetória que mapeei até aqui possa ajudar quaisquer interessados em investigar mais a fundo a história passada ou atual do conceito de apropriação cultural.

Antes de terminar de vez, destaco aqui dois textos que parecem ser muito pertinentes para o momento atual. James O. Young publicou um artigo sobre a ética da apropriação cultural chamado The ethics of cultural appropriation (1994).  Esse artigo foi pouco citado, porém o autor continuou a investigar o tema. Além de ter acumulado uma bibliografia ampla sobre o assunto, em 2009 organizou um livro com o mesmo título junto com Conrad G. Brunk que atualiza a discussão sobre a ética envolvida na apropriação cultural, sistematizando as diferentes perspectivas que foram discutidas sobre o assunto e congregando diversos autores que pesquisam esse conceito. Eu só tive tempo de ler a introdução do livro, mas adianto que nela o autor cita os trabalhos publicados de 2002 em diante que referenciam os diferentes campos de debate sobre apropriação cultural (direito, literatura, antropologia, arqueologia).

Espero que tenham achado a discussão interessante. Caso você leitor conheça alguma obra importante nessa trajetória que não foi citada aqui, por favor entre em contato no post ou por email (thomasvconti@gmail.com) que adoraria incorporar novas adições a este texto para torná-lo o mais útil possível. Abaixo seguem todas as referências bibliográficas que citei ao longo do texto.

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Referências

  1. Beidelman, T. O., & Clifford, J. (1989). Review of “The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature, and Art.” Anthropos, Bd. 84, H. 1./3. (1989), pp. 263-267
  2. Bourdieu, P. (1984 [1979]). Distinction: A social critique of the judgement of taste. Harvard University Press.
  3. Bottomley, G. (1987). Cultures, multiculturalism and the politics of representation. Journal of Intercultural Studies, 8(2), 1-9.
  4. Carlin, J. (1988). Culture Ventures: Artistic Appropriation and Intellectual Property Law. Colum.-Vla JL & Arts, 13, 103.
  5. Clifford, J. (1988). The predicament of culture. Harvard University Press.
  6. Coombe, R. J. (1993). The properties of culture and the politics of possessing identity: Native claims in the cultural appropriation controversy. The Canadian Journal of Law and Jurisprudence, 6(02), 249-285.
  7. Garnham, N., & Williams, R. (1980). Pierre Bourdieu and the sociology of culture: an introduction. Media, Culture and Society, 3(2), 209-223.
  8. Gordimer, N. (1980). From Apartheid to Afrocentrism. English in Africa, 45-50.
  9. Hagedorn, J. (1989). On Theater and Performance. MELUS, 16(3), 11-15.
  10. Harding, S. (1992). Rethinking standpoint epistemology: What is “strong objectivity?”. The Centennial Review, 36(3), 437-470.
  11. Lionnet, F. (1992). “Logiques métisses”: Cultural Appropriation and Postcolonial Representations. College Literature, 19(3/1), 100-120.
  12. Livingstone, D. W. (1985). Class, educational ideologies, and mass opinion in capitalist crisis: A Canadian perspective. Sociology of Education, 58(1), 3-20.
  13. Lutz, Hartmut. (1990). Cultural appropriation as a process of displacing peoples and history. The Canadian Journal of Native Studies, 10(2), 167-182.
  14. Mohanty, S. P. (1989). Us and them: On the philosophical bases of political criticism. The Yale Journal of Criticism, 2(2), 1.
  15. Rahim, S. A. (1986). Language as power apparatus: observations on English and cultural policy in nineteenth‐century India. World Englishes, 5(2‐3), 231-239.
  16. Said, E. W. (1993). Culture and Imperialism. Vintage.
  17. Scolnicov, H., & Holland, P. (1989). The play out of context: transferring plays from culture to culture. Cambridge University Press.
  18. Sherman, D. J. (1987). The Bourgeoisie, cultural appropriation, and the art museum in nineteenth-century France. Radical History Review, 1987(38), 38-58.
  19. Sherman, D. J. (1988). Art Museums, Inspections, and the Limits to Cultural Policy in the Early Third Republic. Historical Reflections/Réflexions Historiques, 337-359.
  20. Steadman, I. (1985). The other face. Index on Censorship, 14(1), 26-27.
  21. Steadman, I. (1988). Stages in the revolution: Black South African theater since 1976. Research in African Literatures, 19(1), 24-33.
  22. Steadman, I. (1990). Towards popular theatre in South Africa. Journal of Southern African Studies, 16(2), 208-228.
  23. Young, J. O., & Brunk, C. G. (2009). The ethics of cultural appropriation. John Wiley & Sons.

Doutor em Economia, professor do Insper e pesquisador do IDP-SP. Sócio e CEO da AED Consulting. Desde 2013 faço divulgação científica neste blog e nas redes sociais por paixão e convicção. Defendo políticas públicas baseadas em evidências e os princípios éticos do humanismo secular.

6 Responses to “Apropriação Cultural: uma história bibliográfica”

  1. André Lucas

    Parabéns, Thomas, um ótimo trabalho de levantamento bibliográfico. Fico impressionado com tanta coisa descoberta em pouco tempo. Um erro bobo: você esqueceu o primeiro “u” de “Bourdieu” ao longo do texto.

    • Thomas Conti

      Olá André, fico feliz que tenha gostado! E obrigado pelo toque do erro no nome do Bourdieu, já está corrigido :)! Abraço!

  2. Silvia Aparecida Biagiotti Beloti

    Olá, Thomas, adorei seu trabalho! Didático, claro e preciso! Parabéns!

  3. Alysson Augusto

    Sensacional, Thomas! Ótima análise, bastante objetiva e imparcial. Queria ter acesso à tua pesquisa antes para poder incorporar na minha própria pesquisa sobre o assunto, a qual publiquei em forma de vídeo no Youtube (http://youtu.be/wjAnM1U3r5o), mas de toda forma agregou bastante ao debate lúcido dessas ideias e certamente vou compartilhar. Abraço!

  4. José Inácio Neto

    Muito bom o texto, Thomas Conti! Interesso-me pelo assunto, tanto por conta repercussão que tem tido entre os movimentos sociais nos últimos anos, mas também pelo caráter controverso presente nas discussões realizadas sobre o tema recentemente nas redes. É sempre bom perceber que em meio a tantas discussões radicalizadas existem pessoas que se interessam por um conhecimento mais aprofundado e fundamentado sobre as questões que incomodam nossa época.

  5. Glauce

    Muito bom texto Conti. No Brasil na década de 80 já temos algumas discussões sobre isso? Quando surge o “movimento ” (Não sei se posso chamar assim) de arte_educação no Brasil. Uma tentativa de pensar a apropriação cultural na nossa educação. Parabéns e se sair um artigo ou tiver saído me manda o link por e-mail?

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