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Entendo que há um erro grave de construção de cenários econômicos para o Brasil de 2020 que está efetivamente impedindo empresas – ou pior, governos – de mensurar os custos econômicos reais das alternativas que nos aguardam em um futuro próximo. O erro está escondido no gráfico abaixo, retirado de um informativo do Banco Central disponibilizado em 20 de março de 2020:

 

Este é um gráfico conceitual do comportamento esperado da economia (quadrante inferior do gráfico) e dos novos casos de hospitalizados por Covid-19 (quadrante superior do gráfico).

Esta parte superior é uma representação incompleta do comportamento da curva epidemiológica do coronavírus, algo esperado dado o conhecimento que temos a partir de estudos da área com modelos SEIR (Susceptíveis, Expostos, Infectados e Recuperados).

Já a parte inferior é uma representação do comportamento da economia segundo o modelo econômico de… modelo? Que modelo? Pois é, não tem modelo.

Se crises econômicas em geral já são eventos raros e únicos o suficiente para impedir a construção de uma teoria econômica de aplicação geral sobre eles, pandemias como esta do coronavírus são ainda mais raras. Economistas foram pegos desprevenidos e com muito pouco já pronto para oferecer em uma situação dramática como essa. Modelos mais sofisticados têm sido criados no último mês, porém nenhum deles está por trás da curva mais suave de recessão no cenário de pandemia descontrolada acima.

Assim, as curvas de recessão com e sem políticas de contenção esboçadas acima são desprovidas de qualquer fundamento científico. Também não têm nenhuma criatividade. Se por um golpe de sorte elas estiverem corretas, elas sugerem que as medidas de contenção são eficazes para achatar a curva de novos casos do coronavírus, mas por outro lado aumentam o efeito recessivo da crise.

A intuição por trás do raciocínio é que isolar as pessoas em casa, fechar atividades produtivas ou reduzir o ritmo usual delas têm um dano econômico muito grande. Não só muito grande. Ela sugere também que o dano é grande e maior que o dano econômico esperado de um cenário da pandemia do coronavírus se expandindo sem nenhuma contenção. Isso faz sentido?

À luz da experiência internacional até o momento, parece que não.

O que vimos na Itália, depois na Espanha, em seguida no Reino Unido, depois nos Estados Unidos, é que tudo indica que a grande maioria das pessoas não aguenta ver a quantidade de mortos por dia que a pandemia tende a criar na sua velocidade máxima e seguir uma “vida normal”. Conforme o número de mortos e hospitalizados aumenta a cada dia, a aversão ao risco da população também aumenta a cada dia.

E a partir de um certo nível de óbitos por dia e de uma dada velocidade de crescimento desse número, a resiliência social à tragédia simplesmente quebra. Pode ser a imagem de comboios funerários como na Itália; médicos de um dos melhores sistemas de saúde do mundo usando sacos de lixo como proteção como na Espanha; um aeroporto sendo convertido em necrotério como no Reino Unido; valas comuns e 800 corpos jogados dentro de casas para serem retirados em um dia em Nova York… as pessoas não aguentam. Se fosse um dia disso, seria mais fácil. Mas depois de ver isso uma vez e imaginar que amanhã será pior, e depois de amanhã ainda pior, dia após dia durante semanas é avassalador. A demanda social se torna clara: alguém só faça isso parar, por favor.

Entra o que estou chamando de Lockdown Endógeno.

O Lockdown Endógeno é uma medida de isolamento social fortíssima, de supressão, que vem em função do medo crescente da sociedade diante da aceleração do número de mortos da curva não-controlada da pandemia. Esse medo torna a população mais disposta a aceitar, na verdade faz a população demandar, uma política de isolamento de supressão mais forte. Vimos isso acontecer na Itália, Espanha, Reino Unido e agora cada vez mais nos EUA. O objetivo dessa política de supressão é reduzir o fator R0 da pandemia para menos que 1, fazendo com que dentro de 15-20 dias o número de novos casos passe a efetivamente diminuir, ao invés de aumentar mais lentamente.

Por oposição, o Lockdown Exógeno seria a mesma medida de isolamento de supressão, porém adotada não em função do medo crescente e trauma social, mas como política pública deliberada de prevenção da curva de contágio mais danosa para a saúde pública. Outras medidas menos fortes seriam também exógenas nesse sentido, se adotadas como forma de prevenção ao invés de em reação a um quadro descontrolado.

Em posse desses conceitos, podemos voltar ao gráfico conceitual das curvas da pandemia e de recessão que iniciam este texto. Minha hipótese é que o cenário econômico mais provável de ocorrer diante da curva epidêmica sem medidas de prevenção é um cenário em que ocorre um Lockdown Endógeno em algum ponto da curva ascendente de novos casos da pandemia. Esse lockdown ocorreria porque a sociedade percebe apenas durante o aumento do número de casos que a situação de risco à saúde pública, colapso hospitalar e colapso funerário é insustentável e passa a preferir o isolamento mais forte do que continuar assistindo à tragédia.

A evidência que tenho a favor dessa hipótese é que até agora nenhum país conseguiu permanecer muitos dias no caminho da curva de contágio não-controlada sem ter que recorrer ao Lockdown muito antes de atingir o pico de contágio descontrolado.

Países como Singapura, Japão, Vietnã, Taiwan e Hong Kong não são contra-evidências, pois apesar de não terem precisado até o momento de um isolamento de supressão, eles adotaram medidas preventivas e nunca chegaram a experimentar a curva de contágio descontrolada por tempo suficiente para vermos se a sociedade aguentaria ou não passar por isso mantendo uma “vida normal”.

Levando em conta a hipótese de que o Lockdown Endógeno é o mais provável de ocorrer em reação à curva de contágio descontrolada, as opções de curva epidemiológica se tornam:

Essa medida de isolamento que estou chamando de Lockdown Endógeno seria mais forte que a atualmente vigente na maior parte dos estados brasileiros. Seria forte como o que vimos Em Wuhan na China, Itália, França e Espanha. Os modelos epidemiológicos são unânimes que quanto maior o número de infectados quando da adoção de um isolamento mais forte, menos eficaz é o isolamento. Isso significa que esse isolamento forte não conseguiria conter o colapso do sistema e retornar a um padrão sustentável rapidamente.

O que aconteceria com a economia nesse quadro? Sofreria um impacto muito maior que com medidas moderadas de contenção. O fechamento seria próximo de total e a população ficaria isolada assistindo a cenas terríveis por pelo menos um mês. A figura abaixo representa conceitualmente esse cenário:

Temos evidências que o Lockdown Endógeno é tanto mais provável quanto pior fica o quadro da pandemia descontrolada? Evidências limitadas, mas temos sim. Por exemplo, a iniciativa  Coronavirus  Government  Response Tracker da Universidade de Oxford criou um indicador para medir a força do isolamento adotado em cada país e quando foi adotado. Abaixo vemos alguns exemplos. Note como na maioria dos casos as medidas de isolamento mais fortes aparecem depois do aumento expressivo do número de casos, e não antes deles.

Six countries comparison

Se o Lockdown Endógeno realmente for o cenário mais provável após relaxarmos restrições e o vírus voltar à sua velocidade normal, então o custo de oportunidade do relaxamento das últimas duas semanas está sendo terrivelmente subestimado.

Ao invés de chegarmos em maio com uma economia com novas regras sanitárias e completa adesão de comprometimento da população com essas novas regras, até o fim de maio e junho estaremos assistindo a um colapso acelerado da saúde e do sistema funerário que mudará a opinião pública no sentido de ser favorável a mais medidas de isolamento. Elas serão adotadas, e a essa altura terão perdido muito da sua eficiência, com custos econômicos e em vidas altíssimo e que seriam evitáveis se o risco do Lockdown Endógeno já estivesse incorporado nas análises de cenários alternativos hoje.

Este post é direcionado para chamar a atenção principalmente dos meus colegas economistas sobre isso. Mas uma descrição mais detalhada desse problema e de caminhos que podemos tomar está disponível no meu estudo Crise Tripla do Covid-19: um olhar econômico sobre as políticas públicas de combate à pandemia.

 

 

 

3 Responses to “O imenso prejuízo do Lockdown Endógeno”

  1. rogeriomaestri

    Caro Professor.
    Além das evidências que coleta em seu trabalho, há inclusive outro trabalho feito por economistas do FED de NY, que trás um reforço extremamente importante para a sua hipótese, um trabalho que já por seu nome diz tudo: “Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not: Evidence from the 1918 Flu” (O trabalho está aberto para críticas).
    São dados colhidos pelos economistas do FED da gripe de 1918, chamada impropriamente de gripe espanhola, em que eles mostram que as cidades norte americanas (na época devido o maior isolamento as cidades poderiam ser tratadas isoladamente) que tomaram medidas mais rápidas contra a epidemia, se recuperaram também mais rápido em termos econômicos.
    É uma evidência empírica com dados reais.
    Um grande abraço.
    Eng. Rogério Maestri

    • Thomas Conti

      Olá Rogério, tudo bem? Obrigado pela referência, conheço esse ótimo estudo, ele já estava nas referências do trabalho! Abraços

  2. Marcelo Pilar

    Abordagem interessante essa sobre a capacidade de a população em geral, e aqui acredito que o autor tenha levado em conta tanto o aspecto individual de cada um como o coletivo, suportar o impacto altamente devastador do crescimento absurdo e incontrolável do número de mortos, De certa forma, já estamos presenciando isso. Talvez essa seja uma saída professor, porque, dentro de meu modesto entendimento, não temos o senso de coletividade e, nem de perto, a disciplina dos povos asiáticos para entender e aceitar a realidade de que é preciso se tentar evitar, a quaquer custo, o aumento do numero de contágios. Parabéns pela análise!

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