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Texto publicado pelo autor originalmente no JOTA em 2 de fevereiro de 2021


Em tempos normais, insistimos na importância de avaliar as consequências das nossas leis e regulações. Durante uma emergência de saúde pública, tal importância é tanto maior quanto mais grave a emergência.

No entanto, destaco que pelo há neste momento uma regra e uma interpretação da lei relativas ao uso emergencial de vacinas contra a Covid-19 que já ceifaram vidas no Brasil e que se nada for feito nos custarão mais alguns milhares ou dezenas de milhares de vidas ao longo de 2021.

A regra. A regra que me refiro é a exigência pela Anvisa de que os laboratórios interessados em obter autorização de uso emergencial de vacinas contra a Covid-19 precisem no mínimo ter iniciado estudos clínicos de Fase 3 sobre eficácia e segurança da vacina em solo nacional.[1]

Essa exigência é cientificamente inútil e pragmaticamente danosa. É inútil do ponto de vista científico porque a princípio não há razão especial para acreditarmos que a segurança ou eficácia de uma vacina seria substancialmente diferente na população brasileira ou em outro país. E se tivéssemos razões para acreditar nesta possibilidade, seria preciso exigir não só um estudo Fase 3, mas um estudo Fase 3 com número muito grande de voluntários para que o teste clínico tivesse poder estatístico suficiente para mensurar a diferença.

Pragmaticamente, a regra é danosa pois impõe a todos os laboratórios uma burocracia muito grande em tempo e dinheiro que eles não precisam enfrentar em outros países. A Fase 3 exige envolvimento de instituições parceiras, cadastramento do teste clínico, pelo menos 1.000 voluntários que toma tempo recrutar e custa acompanhar. Isto é, aumenta os custos de transação, como diríamos em análise econômica do Direito.

Como consequência, notícias excelentes como o recente resultado do estudo clínico Fase 3 da vacina da Novavax demonstrando segurança e 89% de eficácia[2] não repercutem diretamente em ações concretas no Brasil. Apesar do estudo da vacina ter envolvido mais de 30 mil pessoas, o laboratório não iniciou um braço do estudo em solo nacional brasileiro com pelo menos mil pessoas, então teria seu pedido de uso emergencial barrado pela Anvisa. Quantas vidas essa burocracia pode nos custar? Facilmente milhares de vidas. Falando apenas da vacina da Novavax, inclusive ela demonstrou eficácia de 85,6% contra a variante B.1.1.7 do Reino Unido e 60% eficaz contra a variante B.1.351 da África do Sul,[3] que têm mutação na proteína spike similar à variante P.1 de Manaus que bate aqui na nossa porta.[4] E nós vamos esperar início de estudo clínico no Brasil para usar uma ferramenta poderosa como essa? Por quê? É urgente revisar esta regra. Mas não é a única.

Há também um problema de interpretação da Lei 14.006/2020 que alterou a Lei 13.979/2020. A Lei 14.006/2020 foi uma medida emergencial que estabeleceu prazo de 72 horas para que a Anvisa autoriza a importação de “quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área da saúde registrado por autoridade sanitária estrangeira e autorizados à distribuição comercial em seus respectivos países.” As agências estrangeiras a que a lei se refere são quatros: 1. Estados Unidos (FDA), 2. União Europeia (EMA), 3. Japão (PMDA) e 4. China (NMPA).

A Lei 14.006 não menciona explicitamente vacinas, porém é razoável dada a emergência de saúde pública elas estejam inclusas nas categorias de “quaisquer medicamentos” ou “quaisquer insumos da área da saúde”. Para remédios ou outros insumos, a identificação que o remédio é eficaz contra o coronavírus – como ocorreu com a Dexametasona – permitiria uso imediato para este fim no Brasil, pois o remédio tem uso comercial aprovado pra outros fins tanto no exterior quanto no Brasil.

O problema específico com relação às vacinas são dois: que a autoridade sanitária pode interpretar que a lei 14.006 só conta para registros definitivos no exterior e não para registro emergencial; e que a autorização de uso emergencial de vacinas pelas agências nomeadas não está sendo acompanhada de autorização de uso comercial.

Isto é, temos uma lei cujo objetivo é agilizar a resposta do país à emergência de saúde pública que, no entanto, está sendo interpretada como exigindo uma certificação definitiva quando aplicada em vacinas. Como consequência, chegamos em situação vergonha que está literalmente matando brasileiros. Por exemplo, a vacina da Pfizer-BioNTech aprovada em dezembro pelo FDA e EMA já foi aplicada com segurança e eficácia em mais de 30 milhões de pessoas mundo afora, mas ainda não está aprovada para uso emergencial no Brasil.[5] A vacina da Moderna também foi aprovada pelas agências em dezembro e aplicada em milhões de pessoas, mas segue não aprovada para uso no Brasil.

Não estão aprovadas apesar do mundo inteiro saber que são seguras e eficazes. Não estão aprovadas por conta de burocracias e por interpretação contraproducente da Lei 14.006/2020, e não para garantir maior segurança aos brasileiros do que usufrui hoje um americano ou europeu. Pelo contrário, cada dia que demoramos para trazer vacinas aprovadas, mais brasileiros são expostos ao vírus, internados e sufocados pela Covid-19. No Reino Unido, estima-se que com tão poucas quanto 20 pessoas vacinadas com vacinas da Pfizer-BioNTech (altamente eficaz) seriam suficientes para salvar vidas em grupo prioritário.[6]

Por estas razões, na minha opinião a Anvisa deveria revogar por completo a exigência de condução em solo brasileiro de braços do estudo clínico Fase 3 para autorização emergencial de vacinas contra a Covid-19. Além disso, deveríamos mudar a interpretação da Lei 14.006/2020 quando aplicada no tema vacinas para que autorização emergencial pelas agências nomeadas já seja suficiente para permitir a vinda destas vacinas ao Brasil em 72 horas. Esta autorização pode ser mais restritiva que a autorização emergencial atual, conforme a Anvisa considerar necessário. Mas que se permita que a lei cujo objetivo é facilitar o uso de produtos que salvem vidas seja usada para rapidamente salvar vidas também com vacinas.

Caso para este fim não se queira acionar a Lei 14.006/2020 como sugiro aqui, dado o problema concreto que está atrasando a vinda de vacinas deveria ser matéria urgente no Congresso Nacional editar nova lei que estabeleça regras para facilitar a vinda imediata para o Brasil de vacinas aprovadas emergencialmente por órgãos reguladores estrangeiros de alta reputação. Facilitaria as negociações dos laboratórios com o governo federal e caso ele continue não demonstrando interesse em trazer vacinas, facilitaria também os esforços dos vários governadores que estão tentando trazê-las.

Não podemos devolver as vidas perdidas pela burocracia desta aprovação entre dezembro e janeiro, mas podemos impedir que mais mortes evitáveis como essas aconteçam no resto do ano. Diante das consequências conhecidas, é o que deveria ser feito.


Referências

[1] ANVISA, Guia sobre os requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária de uso emergencial, em caráter experimental, de vacinas Covid-19, 2020.

[2] G1, Vacina contra a Covid-19 da Novavax tem eficácia de 89%, aponta análise inicial, G1, disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/01/28/vacina-contra-a-covid-19-da-novavax-tem-eficacia-de-89percent-apontam-estudos.ghtml>, acesso em: 28 jan. 2021.

[3] HOWARD, Jacqueline et al, Novavax vaccine is 89% effective in UK trial, but less so in South Africa, CNN, disponível em: <https://www.cnn.com/2021/01/29/europe/novavax-covid-vaccine-uk-sa-trials-gbr-intl/index.html>, acesso em: 29 jan. 2021.

[4] CDC, Emerging SARS-CoV-2 Variants, Centers for Disease Control and Prevention, disponível em: <https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/more/science-and-research/scientific-brief-emerging-variants.html>, acesso em: 31 jan. 2021.

[5] More Than 94.4 Million Shots Given: Covid-19 Vaccine Tracker, disponível em: <https://www.bloomberg.com/graphics/covid-vaccine-tracker-global-distribution/>, acesso em: 31 jan. 2021.

[6] JOINT COMMITTEE ON VACCINATION AND IMMUNISATION, Joint Committee on Vaccination and Immunisation: advice on priority groups for COVID-19 vaccination, 30 December 2020, GOV.UK, disponível em: <https://www.gov.uk/government/publications/priority-groups-for-coronavirus-covid-19-vaccination-advice-from-the-jcvi-30-december-2020/joint-committee-on-vaccination-and-immunisation-advice-on-priority-groups-for-covid-19-vaccination-30-december-2020>, acesso em: 31 jan. 2021; MCDONALD, Stuart, Vaccine Priorities, COVID-19 Actuaries Response Group, disponível em: <https://www.covid-arg.com/post/vaccine-priorities>, acesso em: 31 jan. 2021.

Doutor em Economia, professor do Insper e pesquisador do IDP-SP. Sócio e CEO da AED Consulting. Desde 2013 faço divulgação científica neste blog e nas redes sociais por paixão e convicção. Defendo políticas públicas baseadas em evidências e os princípios éticos do humanismo secular.

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