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Nos últimos 30 anos o mundo vivenciou um crescimento econômico diferente do que vinha experimentando antes. Ao invés da distinção usual de apenas um grupo pequeno de países crescendo de forma significativa e com estabilidade mínima, representando a minoria da população mundial, nessas últimas décadas países que representam a maior parte da população do mundo passaram a crescer. A consequência foi uma redução vertiginosa da pobreza extrema.

Com o intuito de ajudar na visualização dessa mudança, construí os dez gráficos abaixo utilizando a excelente ferramenta de visualização do Gapminder. A comparação é sempre dos trinta anos 1985-2015, a linha de pobreza extrema e a escala horizontal dos gráficos estão uniformes entre eles. Tomei a liberdade de acrescentar uma linha aproximada de mediana (a reta preta pontilhada), para sabermos qual é a renda diária que divide a população sob análise em 50% abaixo dela e 50% acima dela. Espero que gostem. Para quem quiser saber mais sobre a metodologia e sobre o critério de definição da linha de pobreza extrema ($1,9 dólares PPC por dia, por pessoa), explico mais sobre isso no item 6 após os gráficos.

1. Mudança na renda e como ela está distribuída 1985-2015, no mundo:

Você pode acessar este gráfico mundial e mudar as datas como preferir.

No gráfico de cima, em 1985 temos um mundo claramente dividido em dois grupos: países de alta renda numa ponta e 43,1% da humanidade abaixo da linha de pobreza extrema. No gráfico de baixo, em 2015 temos um mundo sem as duas concentrações de população em polos e a população abaixo da linha de pobreza extrema caiu para 11,4% da população mundial. E a renda mediana, que divide os 50% mais pobres e os 50% mais ricos, aumentou em 213%, de $2,2 dólares por dia para $6,9 dólares por dia (sempre em paridade do poder de compra, isto é, sem efeito da inflação).

2. Mudança na renda e como ela está distribuída 1985-2015, apenas América Latina:

Você pode acessar este gráfico da América Latina e mudar as datas como preferir.

Vemos que na América Latina a redução foi também substancial: a parcela da população abaixo da linha de pobreza extrema foi reduzida pela metade! A renda mediana também cresceu 45%, de $6,2 dólares por dia para $9 dólares por dia.

3. Mudança na renda e como ela está distribuída 1985-2015, apenas Ásia:

Você pode acessar este gráfico da Ásia e Oceania e mudar as datas como preferir.

A Ásia com certeza foi a maior responsável pela diminuição drástica da pobreza mundial nos últimos 30 anos: de 57% de pessoas abaixo da linha de pobreza extrema para apenas 5,9%, menos do que a América Latina em 2015! Em 1985, havia 1,7 bilhões de pessoas abaixo da linha de pobreza extrema vivendo na Ásia, enquanto em 2015 esse número caiu para 270 milhões de pessoas. Certamente ainda é uma população muito grande vivendo na pobreza extrema, mas continuando nesse ritmo não falta muito tempo para que esse número se aproxime de zero.

4. Mudança na renda e como ela está distribuída 1985-2015, apenas África:

Você pode acessar este gráfico da África e mudar as datas como preferir.

Assolada por grandes conflitos internos nos últimos 30 anos, o continente africano foi o que menos conseguiu reduzir a pobreza extrema. A queda na proporção de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza extrema não foi muito grande e a renda mediana diária cresceu apenas 15%, de $2 dólares por dia para $2,3 dólares por dia. No entanto, há motivo para algum otimismo. A incidência de guerras e conflitos no continente diminui na última década e a maior parte da redução da pobreza destes 30 anos também ocorreu entre 2005 e 2015. Ou seja, há motivos para acreditarmos que a tendência para a próxima década é que o continente vivencie uma redução rápida da pobreza extrema.

5. Mudança na renda e como ela está distribuída 1985-2015, apenas Europa, EUA e Canadá:

Você pode acessar este gráfico da Europa, EUA e Canadá e mudar as datas como preferir.

No continente Europeu, Estados Unidos e Canadá a pobreza extrema já era uma preocupação menor em 1985, porém ainda assim houve uma redução significativa nos últimos 30 anos. A renda mediana também cresceu bastante, 42%, de $22,5 dólares por dia para $32 dólares por dia. Um pouco abaixo do crescimento da velocidade de crescimento da renda mediana da América Latina e muito abaixo do crescimento da Ásia, mas acima do crescimento da África.

6. *Sobre os motivos que levaram à adoção do novo critério internacional de linha de pobreza como $1,9 dólares PPP por pessoa, por dia:

Eles estão bem documentados na literatura. A linha de pobreza de 2005 foi obtida fazendo o valor médio das linhas de pobreza nacionais das 15 economias mais pobres entre as 74 economias com linhas de pobreza e dados disponíveis (as 15 foram Chad, Etiópia, Gambia, Ghana, Guinea-Bissau, Malawi, Mali, Moçambique, Nepal, Niger, Rwanda, Serra Leoa, Tajiquistão, Tanzania e Uganda); esse valor foi depois convertido em dólares PPP de 2005 com base em cestas de consumo representativas. O número portanto reflete a realidade dos países que estavam na pior situação e permitiu ver que muitas pessoas fora desses lugares também estavam em situação similar – daí números tão grandes no ano de 1987. A ideia bastante simples é que os países mais pobres do mundo provavelmente seriam um critério razoável de pobreza extrema e que tirar as pessoas dessa situação traria benefícios consideráveis.

Por que uma linha tão baixa? Esse tema daria muito tema de discussão, então vou me ater apenas ao mínimo necessário para discutir isso. Como bem consolidado na literatura sobre desenvolvimento econômico, sabemos que:

(1) Tanto a renda quanto a riqueza crescem em função do tempo de forma exponencial. Exemplo. Isso é fácil de visualizar comparando a dificuldade de ganhar $500 dólares a mais no ano para alguém que ganha $500 dólares atualmente, versus a dificuldade de ganhar os mesmos $500 dólares a mais no ano para alguém que ganha $50.000 ao ano. A primeira pessoa precisa ver sua renda crescer 100% enquanto a segunda só precisa que sua renda cresça 1%. Essa característica incontornável da renda e da riqueza faz com que sempre seja mais difícil aumentar a renda dos que tem uma renda baixíssima do que aumentar a renda dos que já tem alguma renda para começar. Dada essa característica exponencial, faz sentido para quem quer fazer uma comparação mundial da pobreza extrema adotar um critério mínimo que permita distinguir os países e focos populacionais da extrema pobreza, sem misturar as dificuldades contextuais que enfrentam as pessoas que não conseguem sequer ganhar $1 por dia das demais pessoas.

(2) Questões empíricas. Os estudos sobre a linha de pobreza estão mais que cientes das limitações do índice e eles mesmos usam mais de um indicador e fazem outras comparações e ponderações para formar uma figura mais rica dos problemas. Uma delas é analisar as características geográficas, demográficas, econômicas e circunstanciais dos países e regiões onde se encontram a maior parte das pessoas abaixo da linha de pobreza extrema. O que eles constatam é que a vida dessas pessoas é caracterizada por uma grande instabilidade, com dias que se ganha alguma renda a mais (digamos, $10, $15), seguidos de dias que não se ganha nada ou até se perde renda. Essa instabilidade ainda é agravada por um contexto de violência (seja de conflitos internos entre grupos ou de índices elevados de banditismo, homicídio, etc) e de insegurança (falta apoio para ter estabilidade das posses, não ser roubado por grupos mais fortes, corrupção, etc). Por fim, principalmente na África Subsaariana, há problemas de obtenção de recursos básicos, como muitas horas perdidas para buscar água, que somadas à baixa tecnologia e segurança disponíveis dificultam o processo de romper esse limite mínimo de acesso a recursos primários (falo recursos primários no sentido do John Rawls mesmo, autor recorrente nessa literatura).

De novo com a ressalva de estar me atendo apenas ao mínimo do mínimo sobre o tema. A conjugação de (1) e (2) faz com que a adoção de uma linha de pobreza extrema “baixa” (para nossos critérios subjetivos) não implique que ela seja irrelevante para pensar políticas públicas que possam ajudar a resolver esse problema. Toda linha de pobreza é arbitrária e isso é reconhecido na literatura [2]. A questão é qual o propósito que se pretende com a linha e se ela atende a esse propósito de forma adequada. No caso da linha de pobreza extrema, ela é relevante para o propósito de identificar os países e populações em situação realmente crítica para os padrões internacionais, para identificar países e regiões cujas autoridades políticas e instituições estatais não resolveram os problemas básicos de provisão de segurança e estabilidade, para identificar os lugares de carência drástica de água e outros recursos primários.

Como a literatura sobre o tema aponta, as pessoas acima dessa linha internacional de pobreza extrema estão longe de terem uma vida material confortável para os padrões da média internacional de vida, contudo já é possível discernir que alguns problemas presentes na vida cotidiana daqueles abaixo dessa linha podem não ser mais tão importantes para essas pessoas que conseguiram superar esse limite mínimo (exemplo, integridade física minimamente assegurada permitindo estabelecer uma vida econômica [3] e tomar decisões levando em conta horizontes um pouco maiores de tempo – do dia para a semana ou mês, por exemplo).

Como mostra o gráfico do post, após a superação do limite de $1,90 rapidamente a média da distribuição da renda diária da população já se deslocou para perto dos $8 dólares por dia por pessoa – e havia levado quase 200 anos para sair da faixa entre $0 e $1!

O que penso é que esse nível mínimo internacional é útil para os propósitos que se propõe analisar e adota critérios que permitem um acompanhamento razoável de alguns problemas importantes subjacentes à pobreza extrema. Mas os próprios autores que tratam disso mesmo admitem que outros índices são importantes, cada um tem uma função a desempenhar e algo que mostra melhor que os outros. Não acredito que as limitações amplamente reconhecidas dessa linha internacional de pobreza extrema sejam suficientes para acharmos que a melhora ilustrada por ela é pura ilusão: não é. Basta vermos no gráfico como a distribuição mundial da renda teria revelado uma melhora não importa aonde decidíssemos traçar a reta vermelha de comparação.

Para além disso, vale também notar que há uma correlação altíssima entre nível de renda (em geral) e indicadores multidimensionais de pobreza. O gráfico abaixo deixa isso bastante nítido: no gráfico da esquerda temos o percentual de pessoas vivendo na pobreza extrema por país, enquanto no gráfico da direita temos o percentual de pessoas vivendo na pobreza multidimensional por país. A correlação é altíssima. Agradeço o Carlos Goés pela indicação do gráfico:

Referências:

Para saber mais sobre o cálculo da Paridade do Poder de Compra, ver o guia da OCDE: Eurostat-OECD Methodological Manual on Purchasing Power Parities (2012).
[1] Global Monitoring Report 2015-2016, páginas 29-31.
[2] Ravallion, M. (2015). The economics of poverty: History, measurement, and policy. Oxford University Press. Capítulo 1.
[3] Vídeo ilustrativo.

Doutor em Economia, professor do Insper e pesquisador do IDP-SP. Sócio e CEO da AED Consulting. Desde 2013 faço divulgação científica neste blog e nas redes sociais por paixão e convicção. Defendo políticas públicas baseadas em evidências e os princípios éticos do humanismo secular.

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