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A nova moda do momento é compartilhar o artigo sobre a perpetuação da riqueza das famílias mais ricas da Florença de 1427 até hoje usando-o como prova de que não existe meritocracia. Esse, dentre vários outros fenômenos, é um exemplo clássico do muito disseminado problema de confundir correlação com causalidade.

A premissa oculta é a de que a existência de meritocracia certamente causaria uma quebra na passagem de riqueza familiar entre uma geração e outra. Partindo dessa premissa, toma-se a permanência até hoje de algumas famílias ricas como evidência de que não existe meritocracia, pois a meritocracia causaria uma quebra em algum ponto nos últimos 600 anos.

O problema é que a premissa é falsa, e mesmo se fosse verdadeira a evidência também não a provaria. História econômica não é fácil, e história dos conceitos também não. Vamos aos argumentos.

“Meritocracia” é uma ideia que coloca como tipo ideal de sociedade aquela onde o poder deve ser distribuído de acordo com os méritos de cada pessoa, isto é, suas habilidades e talentos. A palavra é muito recente, datando do livro de 1959 de Michael Young chamado The Rise of Meritocracy (A Ascensão da Meritocracia), onde o autor retrata um mundo distópico onde toda a autoridade é distribuída conforme o mérito individual. Se o leitor tiver dificuldade para enxergar como seria distópico, pense no que aconteceria com as pessoas com deficiência física ou mental se isso for levado às últimas consequências.

Abaixo, um gráfico mostrando a ocorrência da palavra “meritocracia” (meritocracy) ao longo do tempo, deixando claro quão recente ela é:

Pois bem, o que essa ideia tem a ver com causar quebras na passagem da riqueza familiar de uma geração para outra? Absolutamente nada. Se o mundo fosse 100% meritocrático, famílias poderiam muito bem se perpetuar no poder e riqueza por séculos sem nenhum problema. Só precisariam tomar vários cuidados para criar os filhos incentivando ao máximo todos os seus talentos e ensinando-os as habilidades necessárias para por mérito continuarem no topo. E seja lá quem tivesse mais poder e riqueza nesse mundo, certamente teria também ao seu dispor todos os recursos financeiros e contatos sociais para viabilizar esse tipo de transmissão de habilidades para a próxima geração.

Notem que “meritocracia” é a ideia de “poder pelo mérito”. Não é sinônimo de apenas “mérito”. Talvez algo mais próximo do que as pessoas ingenuamente chamam de meritocracia seria “poder pela distinção individual em um sistema de concorrência justa e igualitária, entre pessoas que partiram de condições iniciais iguais e que tiveram oportunidades iguais de distinção ao longo do tempo”. Vou chamar essa segunda ideia diferente da meritocracia original de “meritocracia igualitária” apenas para fins didáticos.

Essa “meritocracia igualitária” e a meritocracia original de “poder pelo mérito” são coisas completamente diferentes.

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Agora vamos para a correlação. Algumas famílias que estavam no topo da renda em Florença em 1427 continuam sendo as famílias mais ricas até hoje. O que isso nos diz sobre a existência ou inexistência de meritocracia? Nada, seja qual for o conceito de meritocracia utilizado.

Para invalidar a ideia de “poder pelo mérito” (ideia que sequer existia na Florença de 1427) teríamos que mostrar a incompetência sistêmica e secular de talento e habilidades dessas famílias durante os últimos 600 anos. Teríamos ainda que mostrar como a riqueza e status herdados da geração anterior foram suficientes para mantê-los no topo durante 600 anos a despeito dessas incompetências.

Vale dizer, se as famílias mais ricas hoje em Florença não fossem as famílias mais ricas em 1427, tampouco isso seria evidência de falta de meritocracia. A região passou por dezenas de guerras, incluindo a Primeira e Segunda gueras mundiais. Não faltaram disputas entre nobrezas, revoltas camponesas, e puro azar que poderiam ter causado a queda dessa riqueza familiar mesmo se a sociedade em que vivem fosse uma sociedade onde houvesse a mais plena “meritocracia igualitária”.

E mesmo nessa situação (que nunca existiu materialmente e que nunca foi sequer tentada em lugar algum), elas poderiam ter perdido a riqueza por problemas outros que nada tivessem a ver com seus talentos e esforços pessoais. Pode ser que a manutenção delas no poder tenha ocorrido justamente pelo efeito contrário: elas podem ter passado por várias crises de passagem de patrimônio entre gerações mas pelo mérito terem dado um jeito de voltar ao topo. Pouco provável? Com certeza, mas poderíamos ter uma ideia disso se soubéssemos, do total de famílias ricas em 1427, quantos % não estão mais entre as mais ricas ou simplesmente deixaram de existir. Assim teríamos uma ideia se as mais ricas hoje são casos excepcionais ou não. Apenas com dados que elas continuam entre as mais ricas conseguimos provar que algo assim não ocorreu? Não conseguimos.

Ou seja, temos que lembrar que a busca por identificar relações de causa e efeito é muito diferente da busca por provar o que nós queremos que as relações de causa e efeito sejam. A primeira é o que entendemos por ciência. A segunda é o que entendemos por “wishful thinking” (querer que a realidade se comporte como você gostaria que ela se comportasse), ou ainda uma moralização completa da análise social. O que nós podemos dizer sobre a existência ou não de “poder pelo mérito” em Florença com base nas evidências desse artigo de perpetuação da riqueza? Absolutamente nada. Mas podemos moralizar a situação toda e concluir o que nós gostaríamos que os dados dissessem.

Os autores do artigo original são bons pesquisadores e obviamente tomaram esse cuidado. Não falam nada sobre meritocracia, o artigo é sobre evidências quanto à mobilidade inter-geracional. Mobilidade inter-geracional é muito diferente de meritocracia e, como procurei mostrar, nada no conceito de meritocracia nos levaria a concluir que um mundo onde o poder é distribuído pelo mérito teria mobilidade inter-geracional completa. Isto é, na meritocracia no sentido estrito do termo a distribuição da riqueza e poder da próxima geração não teria correlação igual a zero com a distribuição da riqueza e poder da geração presente.

Se o que as pessoas querem é que essa mobilidade inter-geracional seja total, então talvez não seja a meritocracia o nome do princípio de distribuição de poder e riqueza que elas estejam procurando.

Ou talvez o que elas querem é meritocracia somada à total igualdade de oportunidades e condições iniciais, somada ainda a um sistema que “reinicie” as condições iniciais a cada nova geração para que o poder e riqueza distribuído por mérito à primeira geração não tenha efeito na geração seguinte. Mas essas cláusulas adicionais não fazem parte da ideia de “poder pelo mérito”.

Ou ainda elas só querem que a sociedade tenha mais incentivos e recompensas para quem se esforça, o que no debate público às vezes se confunde com meritocracia. Mas você pode ser a favor de mais recompensas a quem se esforça sem concordar com uma sociedade governada inteiramente pelo mérito, a chamada meritocracia. Uma coisa não implica a outra.

Por fim, se as pessoas nunca pararam para refletir que distribuir o poder pelo mérito pode também levar à reprodução de algumas famílias no poder durante muito tempo, o desconhecimento dessas pessoas não muda em nada as conexões lógicas e causais da realidade. Exceto por disseminar um show de espantalhos lógicos e argumentos pela metade.

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Doutor em Economia, professor do Insper e pesquisador do IDP-SP. Sócio e CEO da AED Consulting. Desde 2013 faço divulgação científica neste blog e nas redes sociais por paixão e convicção. Defendo políticas públicas baseadas em evidências e os princípios éticos do humanismo secular.

One Response to “O conceito de Meritocracia nunca foi incompatível com perpetuação de elites”

  1. Arthur

    Excelente artigo. Já venho pensando muito sobre essas questões e a correlação entre “meritocracia” (seja lá em que sentido as pessoas usam no cotidiano) e a dificuldade que os meros mortais têm em ascender socialmente quando em comparação com famílias abastadas.

    Acho muito interessante o conceito de “ano do jubileu” que foi utilizado na cultura judaica muito antes de Cristo: a ideia era possibilitar o mérito pelo esforço (e o “poder pelo mérito”), mas reiniciar a sociedade a cada 7 anos. Pegando a ideia do “sabbath”, a sociedade funcionaria por 6 anos, e no sétimo não haveria plantio, todas as dívidas seriam perdoadas e todos os escravos libertos. Além disso, ao fim de 49 anos (7 x 7 anos) haveria mais um ano sabático, em que nos anos 49 e 50 não haveria produção, as dívidas seriam perdoadas, os escravos seriam libertos e ainda as heranças vendidas ao longo dos últimos 49 anos voltariam para as famílias originais (cujos nomes e propriedades estavam devidamente arquivados). No fim do ano 50 haveria uma festa para celebrar o recomeço. O conceito de “ano do jubileu” pode ser encontrado na torá/bíblia e vale a pena conferir.

    O que achas dessa ideia?

    Amplexos ursídeos.

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