Texto publicado pelo autor originalmente no JOTA em 9 de fevereiro de 2021
O Senado e a Câmara dos Deputados aprovaram a medida provisória MPV 1003/2020 que altera as regras de aprovação emergencial de vacinas pela Anvisa, dentre outras medidas. A intenção alegada por apoiadores e o líder do governo no congresso é agilizar a vinda de vacinas para o Brasil. No entanto, o movimento foi criticado como ataque[1] ou atropelo[2] da agência reguladora por diversos atores e a própria Anvisa ameaçou recorrer na justiça contra a legislação.[3]
Como nós que trabalhamos com análise econômica do direito insistimos, boas intenções estão longe de ser suficientes para criar uma legislação que produza boas consequências. O caso em tela não é exceção. É salutar a intenção de obtermos vacinas mais rápido – eu mesmo escrevi aqui no Jota defendendo duas medidas com este objetivo, uma delas realizada pela Anvisa no dia seguinte.[4] Porém há detalhes da proposição legislativa que podem de fato trazer problemas. Enquanto alguns críticos têm se posicionado mais no sentido de se opor completamente à proposta, meu objetivo neste texto é ser mais preciso na crítica e propor algumas ideias de melhoria.
O ponto mais polêmico da MPV 1003/2020 é seu Art. 5º, que versa sobre a autorização temporária de uso emergencial de vacinas. Destaquei os trechos que considerei mais importantes e para comentá-los um a um. Mas antes, cabe explicar o contexto desse artigo.
Já estava em vigor desde maio a Lei 14.006/2020, que concedia autorização excepcional e temporária para importar e distribuir remédios aprovados por pelo menos uma de quatro agências internacionais. Mas ela não vinha sendo aplicada para vacinas.
No entanto, solução avançada pelo Congresso e Senado vai além da Lei 14.006. Bastante além. Não sei dizer se a intenção é mesmo atropelar a Anvisa, mas há dispositivos na lei que na prática removem processos da agência acima do que a urgência necessita. Arriscam até serem contraproducentes.
Isso porque campanha de vacinação é altamente afetada pela confiança que a população tem na vacina.[5] Sim, precisamos trazer vacinas o mais rápido possível. Mas o Brasil construiu para si um histórico de alta confiança em vacinas, não podemos ser negligentes e arriscar perder confiança à toa. Países como a França[6] e o próprio Estados Unidos[7] sofrem com estes problemas.
Enquanto a Lei 14.006 fala em autorização excepcional – que ao menos no meu entendimento poderia ter regras próprias e menos abrangentes conforme Anvisa entender necessárias –, a MPV 1003 iguala o regime de aprovação automática à aprovação emergencial da Anvisa, que permite não só importar e distribuir, mas também usar as vacinas.
Embora talvez não seja a intenção, na prática o órgão legislador é tirado de cena, pois o regime dessa aprovação automática acaba sendo o mesmo regime emergencial de aprovação analisada com mais tempo e cuidado pela Anvisa. Permite inclusive usar as vacinas antes de tempo hábil de analisar pontos práticos, como se as fábricas que produzem a vacina para fornecimento brasileiro são adequadas à produção e a qualidade do produto. Embora a tecnologia da vacina seja a mesma, a fábrica na qual será feita à produção para um país estrangeiro pode ser diferente da fábrica que fornecerá para o Brasil, cabendo no mínimo uma inspeção.
Como melhorar? A autorização poderia ser menos abrangente que a autorização emergencial da Anvisa. Poderia, por exemplo, permitir importar e distribuir, mas o uso aguardaria aprovação emergencial. Assim, facilitaria a compra, negociação e produção das vacinas, mas sem comprometer confiança e segurança na vacina antes de ter a qualidade inspecionada devidamente.
A MPV 1003 também expande o rol de agências que levariam à aprovação expressa no Brasil de 4 para 9. A inclusão de agências do Canadá, Reino Unido e Coreia do Sul entendo como pouco controversas, afinal são democracias com forte controle regulatório que é razoável servir de base para auxiliar decisão mais rápida no Brasil. No entanto, não é claro se a agência reguladora da Rússia tem independência política suficiente para servir de base a uma aprovação automática do tipo. A agência reguladora da Argentina também aprovou recentemente a Sputnik-V antes de qualquer resultado de estudo clínico Fase 3 da vacina, evidência que pode adotar critérios mais frouxos dos utilizados aqui no Brasil. Difícil dizer que sua inclusão tem como objetivo agilizar a vinda de vacinas sem prejuízo aos critérios de segurança e eficácia, dado que outras agências inegavelmente mais rigorosas e transparentes como a agência australiana não constam nas adições.
Além da lista, a lei também define que basta ser aprovado por uma dessas agências para agilizar a aprovação no Brasil. Na prática, isso torna nosso processo regulatório tão bom quanto a menos rigorosa das agências da lista. É uma regra que faz a corrente quebrar pelo elo mais fraco. No caso, provavelmente a agência argentina. Ou russa ou chinesa.
Como melhorar?
Alteração 1. Argentina não deveria ser inclusa na lista. No máximo, ela tem a mesma qualidade regulatória que nós e não deve receber interesses de laboratórios em velocidade mais rápida que o Brasil. Rússia não sei avaliar.
Alteração 2. Restringir a regra de aprovação de “pelo menos uma” agência para “pelo menos duas” das agências.
A alteração 2 é especialmente importante. Se a regra é “pelo menos uma” agência, nossa aprovação excepcional se torna tão frágil quanto o elo mais frágil da lista. Porém, se a regra é “pelo menos duas”, nossa aprovação excepcional se torna na prática mais robusta que qualquer agência individual dessa lista.
Isso porque nós só concederíamos essa aprovação ágil se duas agências diferentes e independentes aprovarem. Para esta decisão levar a um erro de eficácia ou segurança da vacina, seria preciso que as duas agências errassem ao mesmo tempo, o que por serem independentes é muito mais improvável do que estarem erradas individualmente.
Dessa forma, a meu ver não estaríamos atropelando precauções necessárias de segurança. Teríamos processo ágil e seguro de contratar, importar e distribuir vacinas, aguardando apenas o uso. A Anvisa poderia avaliar as condições de produção e outros critérios e, com ok da Anvisa para uso, as vacinas já estariam em solo nacional para pronta aplicação.
A parte da MPV 1003 que considero acertada é o entendimento de que aprovações emergenciais no exterior fornecem uma informação muito importante e que merecem ser também consideradas na medida que ajudam os esforços do Brasil de combater a pandemia. Da forma que se estava interpretando Lei 14.006, com apenas registro definitivo contando para vacinas, a lei deixava de servir seu propósito de facilitar e agilizar a vinda de vacinas para o combate da pandemia.
Dois últimos pontos questionáveis, mas que não sei qual seria o melhor direcionamento: 1) Cinco dias são ou não suficientes para alguma avaliação preliminar da Anvisa? E 2) Deveríamos começar a contar os dias a partir da submissão do pedido ou a partir da decisão regulatória estrangeira?
Estes pontos ficam em aberto pois, se a vacina já tiver sido aprovada por pelo menos duas agências independentes como sugeri aqui, e a autorização excepcional não envolver liberação para uso, poderíamos já partir da aprovação estrangeira e não aguardar submissão em português para facilitar negociação e importação de vacinas. A submissão emergencial em si mesma é um processo um tanto moroso e que pode estar sujeito a bloqueios políticos como vimos com a Pfizer-BioNTech.[8] É apenas uma ideia, mas achei importante listar aqui.
Resumo minha opinião geral sobre aprovação da MPV 1003/2020 na imagem a seguir. Em verde, pontos positivos. Amarelo pontos questionáveis se são adequados ou não. Laranja pontos ruins e em vermelho pontos que a meu ver não deveriam constar na lei. A intenção geral da lei de agilizar vinda de vacinas é sim boa, mas em temas complexos só intenção não basta.
Aproveito para deixar também uma sugestão de como ficaria a redação da lei seguindo algumas ideias deste artigo. 1) Autorização excepcional no lugar do regime emergencial; 2) Para importar e distribuir, mas uso aguarda decisão da Anvisa; 3) Pelo menos duas agências internacionais ao invés de apenas uma; 4) Sai pelo menos a agência da Argentina e entra a agência da Austrália. 5) Em aberto, quantos dias são precisos para avaliação de produção e qualidade pela Anvisa e a partir de quando deveríamos iniciar a contagem de dias.
Como último comentário, deixo um alerta. Independentemente do formato final desta peça legislativa e o que acontecerá em uma disputa judicial sobre a sua legalidade, este tipo de legislação não deveria ser construída como guerra entre Legislativo e Anvisa. Pelo contrário, as partes interessadas deveriam conversar e achar pontos comuns para dentro do possível (1) agilizar vinda de vacinas e (2) manter confiança social nas vacinas e no processo regulatório.
Espero que nos próximos dias ocorra este tipo de diálogo, pois as consequências dessa legislação serão de máxima importância par ao país em 2021 no combate à pandemia, e para a próxima década se a confiança social nas vacinas for colocada em risco em decisões de curto prazo.
Referências
[1] VARELLA, Drauzio, O ataque à Anvisa, Drauzio Varella, disponível em: <https://drauziovarella.uol.com.br/drauzio/artigos/o-ataque-a-anvisa-artigo/>, acesso em: 8 fev. 2021.
[2] Anvisa quer recorrer contra MP que obriga aprovação de vacinas em até cinco dias, Exame, disponível em: <https://exame.com/brasil/anvisa-quer-recorrer-contra-mp-que-obriga-aprovacao-de-vacinas-em-ate-5-dias/>, acesso em: 8 fev. 2021.
[3] Anvisa deve recorrer à Justiça contra MP que obriga aprovação de vacinas em até 5 dias, disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2021/02/05/anvisa-deve-recorrer-a-justica-contra-mp-que-obriga-aprovacao-de-vacinas-em-ate-5-dias.htm>, acesso em: 8 fev. 2021.
[4] G1, Estudo de fase 3 no Brasil deixa de ser obrigatório para uso emergencial de vacinas contra Covid, diz Anvisa, G1, disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/02/03/estudo-de-fase-3-deixa-de-ser-obrigatorio-para-aprovacao-de-uso-emergencial-de-vacinas-contra-covid-pela-anvisa.ghtml>, acesso em: 3 fev. 2021, p. 3.
[5] LARSON, Heidi J. et al, Measuring trust in vaccination: A systematic review, Human Vaccines & Immunotherapeutics, v. 14, n. 7, p. 1599–1609, 2018.
[6] CHADWICK, Lauren, Why do so few people in France want to take the COVID-19 vaccine?, euronews, disponível em: <https://www.euronews.com/2021/01/18/why-do-so-few-people-in-france-want-to-take-the-covid-19-vaccine>, acesso em: 26 jan. 2021.
[7] FERNANDEZ, Manny, Anti-Vaccine Activists Emboldened in California, The New York Times, 2021.
[8] BETIM, Felipe, Pfizer avisa que não solicitará uso emergencial de vacina no Brasil e critica protocolo da Anvisa, EL PAÍS, disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-29/pfizer-avisa-que-nao-solicitara-uso-emergencial-de-vacina-no-brasil-e-critica-protocolo-da-anvisa.html>, acesso em: 2 jan. 2021.
Ótimas considerações. Há muitas questões envolvidas nessa MP, mas há duas em particular que para mim são totalmente políticas e ligadas ao tal “centrão ” – péssimo cenário, em se tratando de uma emergência CIENTÍFICA no sentido rigoroso do termo. São elas: (1) o Brasil esquizofrênico pós-2018 agora quer sinalizar que é “responsável”, e a inclusão da agência argentina parece manobra pra conseguir recuperar certo status no Mercosul e garantir deságua de exportações queno o dólar voltar a cair, mas, principalmente viabilizar (2) a inclusão da agência russa – totalmente reprovável, concorco contigo – confirma a velha e desgastada força-motriz brasileiria, o lobby político. Quando apareceu um lobista ex-deputado a favor da Sputinik “emergiu” a MP. Curioso não? O cenário mais provável será o Brasil ser o primeiro país do mundo a descobrir a fórmula mágica da diluição dos insumos da vacina pela metade e aplicar placebos como mero movimento estatístico-político.