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Imaginem a seguinte situação: Um médico chamado Fulano é conhecido por querer atenção e fama. Fulano ganha destaque em toda parte afirmando que fumar cigarro cura o coronavírus, o que é um completo absurdo. Ainda assim, vários doentes acreditam e começam a fumar. Obviamente, a cura não vem. Tempos depois, vira manchete em um jornal: “A promessa do médico Fulano não vingou, a medicina está completamente errada!!”. Seria ridículo, não seria? Parece até impossível que alguém teria coragem de tirar uma conclusão dessas. Mas em economia isso não apenas é possível como acontece quase toda semana.

No caso, o médico falastrão são políticos e outras pessoas interessadas em chamar a atenção para si seja para ganhar apoio ou para ter outros tipos de ganho e influência. Essas pessoas são amplamente conhecidas por falar qualquer coisa que soe bem aos ouvidos do seu público. Elas não vão falar que fumar cura o coronavírus, mas vão falar sobre mudanças na lei que ocorrem em novembro de um ano mas fazem o PIB daquele ano crescer 1 ponto percentual a mais. Vão falar sobre aumento de gastos públicos ou cortes de gastos públicos pontuais que revertem completamente a trajetória da dívida pública, que vão levar a um crescimento mágico por efeito multiplicador ou que vão levar a um ganho imediato de confiança nas contas públicas também mágico. Vão falar sobre dois parágrafos de lei que mudam e de repente todos estão otimistas com o país e o câmbio vai cair a R$3,00, ou que mudaram dois parágrafos e agora estamos voltando à escravidão. Enfim, afirmações sem nenhum fundamento econômico, mas que chamam a atenção. E infelizmente a despeito de hoje política e mentira serem quase sinônimos, sempre vai ter quem acredite.

Mas quem vai escrever o artigo de jornal deduzindo que essas promessas mentirosas invalidam toda uma área do conhecimento? Um exemplo dramático aconteceu essa semana na Folha de São Paulo.[1] O professor de sociologia Daniel Andrade da EAESP-FGV inicia seu artigo descrevendo corretamente várias promessas que foram feitas por políticos e outros agentes interessados em um conjunto de “reformas liberais” descrevendo também que até agora em larga medida essas promessas não vingaram. No mínimo, prometeram muito mais crescimento e muito mais emprego do que vimos até agora. Até aí nenhuma novidade, vendedores de sonhos e especuladores vendendo sonhos e especulando.

O problema aparece quando o professor faz o mesmo pulo absurdo do exemplo que dei, onde um médico Fulano mentindo e alguém concluindo que por conta da mentira a medicina está errada. Da mesma forma, o professor Daniel Andrade identifica as promessas não cumpridas de candidatos e equipes econômicas e dessas promessas não cumpridas conclui que toda a teoria econômica ortodoxa está errada. De promessas não cumpridas ele conclui que a ideia de que existe um equilíbrio de mercado está errada. Também conclui que mercados não conseguem produzir resultados eficientes. Promessas políticas não se materializaram! Todos os modelos teóricos usados pelos acadêmicos estão errados!

Há um médico mentindo no youtube, logo é preciso mudar todos os livro-texto de medicina! Estão errados!

Esse tipo de erro não é só dele. Há uma intuição por trás que pode levar muita gente ao mesmo tipo de conclusão absurda e frequentemente leva, especialmente quando as conclusões estão alinhadas com aquilo que já se queria acreditar. A pergunta que o professor deveria ter se feito antes de pular em conclusões é: “Existe algum modelo teórico que permitiria dar credibilidade para as promessas que foram feitas? Ou ainda, quem prometeu esses números estava baseado em alguma teoria, alguma evidência, ou fabricou números sem pé nem cabeça?” Tivesse ele feito essa simples pergunta a bons pesquisadores (não a políticos), não teria concluído tamanho absurdo.

Durante o governo Temer lembro de figurões falando que a reforma trabalhista geraria 2 milhões de empregos. Sabe qual modelo teórico eles usaram para chegar nesse número? O modelo de uma reunião com o departamento de relações públicas deles. Talvez alguma pesquisa de opinião, mas provavelmente nem isso. Era um número fabricado, não existe modelo teórico na literatura para chegar em um número como esse.

Gente do governo atual ou alinhada/interessada afirmou que vencendo a eleição ou fazendo essa ou aquela reforma o câmbio chegaria a R$3,00 ou algo assim. Sabe qual modelo teórico permite prever câmbio futuro? Ele mesmo, modelo teórico nenhum. Sabemos de algumas coisas que afetam o câmbio e qual é o sentido desse impacto, mas também sabemos que na prática o câmbio é afetado por tudo que acontece no mundo inteiro e acaba que as variações cambiais reais que acontecem são basicamente movimentos aleatórios. Se alguém prometer câmbio ou prever câmbio podem ter certeza absoluta que é um palpite e que esse palpite não tem como ter desempenho muito melhor que um chute. Se existisse um modelo confiável desses para o câmbio ele renderia tanto dinheiro e tanta gente o usaria que ele deixaria de funcionar em pouco tempo por levar a posições de mercado similares.

Enfim, há muito mais que poderia ser dito aqui e o texto já ficou absurdamente longo. O resumo da ópera é que políticos podem prometer qualquer coisa e mentiras costumam ser mais atrativas que verdades. Logo, antes de tentar concluir que uma falsa promessa política demanda que se reescrevam os livros de uma área do conhecimento, cabe ao menos tentar se informar se o melhor conhecimento da área daria suporte àquelas promessas em primeiro lugar.

Nos casos citados por Daniel Andrade no artigo e nesses outros que eu citei aqui, a boa teoria não só não seria refutada pelas promessas não cumpridas, mas teria ajudado ele e várias outras pessoas a não acreditar nos números prometidos em primeiro lugar.

One Response to “Sobre falsas promessas e falsas teorias”

  1. Fernando Clemente da Rocha

    Excelente comentário, professor! De fato, “modelos teóricos” de qualquer ramo da ciência, aptos a sustentar comentários que se sabe de ampla circulação na mídia, quando partidos de determinados segmentos da sociedade (especialmente os atuantes na política partidária, envolvidos em embates ideológicos extremados, a exemplo do que vivenciamos na Brasil da atualidade), são simplesmente ignorados. Isso ocorre, via de regra, não por desconhecimento inocente (embora os “achismos” sejam também bem comuns), senão por omissão deliberada pelo risco de esbarrar em evidências contrárias ao que se propala, daí a tática de saltar na frente na tentativa de se emplacar pseudoverdades no seio da sociedade.

    Aliás, a propósito de suas observações no texto acerca do que estaria sendo colocado como contraponto nesses comentários sem base científica (“toda a teoria econômica ortodoxa está errada”, “a ideia de que existe um equilíbrio de mercado está errada” e “mercados não conseguem produzir resultados eficientes”), lembrei-me de um comentário recente de Ana Frasão publicado no JOTA, interessante para reflexão. Referia-se ao livro de Joseph E. Stiglitz, nobel de economia (People, Power and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent), refutando toda a base do mainstream econômico tradicional, justamente nessa questão da crença nos mercados em limites tidos pelo autor como excessivos.

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