São Paulo planeja reabrir a partir da semana que vem e divulgou o plano de ação. Acho importante um diagnóstico realista da situação, pesar custos, benefícios e riscos à luz da experiência internacional.
A situação de São Paulo
Nos últimos 2 meses, apesar de uma série de esforços para tentar aumentar a força do isolamento, os seis indicadores de mobilidade do Google praticamente não mudaram. É possível que o governo não saiba como reduzir mais a mobilidade.
Mais importante que a mobilidade é a estimativa do número reprodutivo efetivo da epidemia (Rt). A epidemia só está sob controle se o Rt estimado for menor que 1. São Paulo nunca conseguiu chegar nesse ponto, embora tenha chegado perto.
A consequência do Rt estar maior que 1 é que o número de casos novos por dia continua crescendo em relação ao mesmo dia da semana anterior. Isso significa que há sempre um número grande de infecções ativas circulando na população.
O Brasil soma hoje (29/05) 440 mil infectados e aproximadamente 220 mil infecções ativas. São Paulo tem ~100 mil infectados. Aproximando pela mesma proporção, teríamos pelo menos ~50 mil infecções ativas. Mais que isso em não-notificadas. Essas infecções ativas não detectadas circulando tornam a situação muito mais perigosa e arriscada do que era em fins de março. Houve aumento da capacidade de saúde, mas as infecções ativas cresceram mais. A chance de ser exposto ao coronavírus é maior hoje do que em março quando começamos a quarentena, tudo porque não conseguimos levar o número reprodutivo efetivo da epidemia para menos que 1.
O protocolo de reabertura
No protocolo de reabertura de SP é colocado como condição necessária indicadores estáveis de número de casos, o que não é claro se alguma região está atingindo dada a falta de testes. Capacidade de UTI é mais fácil de medir e parece que alguns municípios estão estáveis. Há um impasse também quanto a isso dado que muito municípios não têm UTIs e dependem da infraestrutura de saúde de municípios vizinhos.
Dado o número maior de infecções ativas hoje do que em março, como controlar a epidemia? Só existem duas barreiras entre esse número imenso de infecções ativas e um contágio acelerado por covid: isolamento social e regras sanitárias mais rigorosas. O distanciamento social será relaxado gradualmente, mas as regras sanitárias são mais rigorosas hoje do que em março. Serão elas suficientes?
Nos moldes atuais, provavelmente não. Porque o que estamos observando hoje já é o efeito combinado de isolamento social mais novas regras sanitárias. Para que a reabertura não seja uma catástrofe, precisamos de regras sanitárias e de distanciamento voluntário criativas para compensar. Vamos a alguns exemplos internacionais.
Ideias para auxiliar uma reabertura
Prioridade número um precisa ser evitar oportunidades de eventos “super-espalhadores”. São situações nas quais uma única pessoa consegue infectar dezenas de outras. Pesquisas em um coral nos Estados Unidos e aulas de dança na Coreia do Sul sugerem que falar alto, cantar e respiração pesada em espaços fechados aumentam risco.
1. Como todas as grandes cidades do Brasil, a capital de São Paulo tem problemas com transporte público lotado. Ideia: Recomendação ampla de silêncio no transporte público. O caso do Japão mostra que é possível não ter clusters no transporte público. Por lá o silêncio no transporte é regra cultural.
2. O Plano de Reabertura em fases coloca escritórios entre os primeiros a poderem reabrir. Porém muitos deles são locais fechados, com ar condicionado, pessoas falando dia todo, e que ao responderem por boa parte dos empregos afetam também no deslocamento das pessoas e lotação do transporte público. Ideia: recomendação pública de manter teletrabalho até o fim do ano. Não necessariamente precisamos tornar obrigatório, uma campanha de conscientização coerente e bem comunicada pode ser bastante eficaz. Muitas empresas já farão isso mesmo que não for obrigatório, uma indicação da prefeitura e do governo estadual serviriam para direcionar mais empresas para essa decisão. E os escritórios que reabrirem seria importante direcionar para que mantenham janelas abertas e que as pessoas usem máscaras.
3. Bares e restaurantes estão na Fase 3. Com base nas experiências bem-sucedidas da Áustria e da Alemanha, uma ideia é diferenciar bares e restaurantes que conseguem servir mesas em lugares abertos, onde o risco é muito menor. É possível recomendar que sirvam clientes do lado de fora. Dando um passo além, muitas cidades conseguiriam facilitar que bares e restaurantes possam colocar mesas na calçada sem grandes problemas, principalmente no interior.
5. A Alemanha conseguiu manter a maior parte das suas fábricas funcionando mesmo durante medidas de isolamento mais rígidas próximas de um lockdown. Menor número de funcionários, disponibilização de testes PCR na própria fábrica, medição recorrente de temperatura, intervalos para lavar a mão, uso de máscaras o tempo todo, jornada reduzida, dentre outras medidas e combinações de medidas foram avisadas com muita antecedência para que as fábricas se adaptassem e não precisassem parar.
7. Também no Japão foram distribuídas máscaras para mais de 50 milhões de domicílios. Na Coreia do Sul, máscaras são distribuídas gratuitamente toda semana. São países muito mais ricos que o Brasil nos quais a população poderia facilmente comprar máscaras por si mesma. Porém o governo distribui gratuitamente para garantir que elas serão utilizadas. Máscaras funcionam. Martelar isso no discurso público com amplas campanhas de conscientização para que todos usem sempre que possível fará mais por São Paulo e pelo Brasil do que quase qualquer outra medida que possamos adotar. Usem máscaras!
Colaboração popular e saúde mental
Boa parte da população está praticando o isolamento há mais de 2 meses. É preciso atualizá-las quanto a riscos que hoje sabemos que são menores para aliviar a pressão psicológica sobre elas e diminuir o trabalho de distanciamento voluntário e novas práticas de higiene. Trazer boas notícias é importante para a saúde mental e pode aumentar a adesão a outros esforços.
Por exemplo, não tendo sintomas de covid, caminhadas e corridas sozinho ao ar livre mantendo metros de distância são muito seguras. Fazem bem para a saúde física e mental e não colocam outros em risco. Muita gente está neurótica com parques e corridas sem necessidade. Esforços policiais inúteis foram direcionados para coibir pessoas sozinhas em locais abertos, o que não faz o menor sentido.
Cada vez mais parece que o contágio ocorre mesmo na interação com outras pessoas e pouco por contato com superfícies. Independente da exposição física ao vírus por superfícies, a infecção de fato só acontecerá se a pessoa levar a mão infectada até a boca, olho ou rosto que são as portas de entrada do vírus. Enfatizar muito para lavar mãos e que não se deve levar mãos ao rosto, olhos e boca pode fazer mais sentido que a desinfecção excessiva de superfícies. Muitas pessoas estão também neuróticas com esse tipo de contato, sem tanta necessidade.
Lockdown e seus riscos
Apesar de eu ter mencionado que a chance de ser infectado agora é muito maior, só falei de estratégias para uma reabertura mais segura e mais eficiente e não falei de lockdown. Por que? Porque (1) o isolamento está perdendo apoio e (2) não sabemos se haverá adesão ao lockdown.
Vejam o caso do Pará. Foi decretado Lockdown em Belém e várias outras cidades no começo de maio e encerrado nesta semana. Conseguem ver o impacto do lockdown nos gráficos de mobilidade abaixo?
Pois é, praticamente não teve.
Embora o lockdown seja uma medida legal/coercitiva, é impossível garantir que ele será cumprido na base da polícia e multa. O efetivo policial não tem escala para isso. A população precisa fazer por si mesma 90% ou mais do esforço para que a fiscalização garanta a adesão dos poucos % que faltarem e sinalize para os demais que a medida está valendo. Sem colaboração, a polícia não dá conta de manter o lockdown e acaba sinalizando a incapacidade do estado e a não-seriedade das medidas.
No fim de março e começo de abril certamente seria muito mais fácil implementar o lockdown, não por outro motivo insisti que nossos esforços não estavam reduzindo a mobilidade o suficiente e que era melhor fazê-lo àquela época. A população estava mais descansada, havia maior apoio popular e mais reservas econômicas. A situação agora é de mais desgaste, menos apoio e situação econômica pior.
Ou seja, mesmo se o lockdown for necessário, há um risco significativo dele simplesmente não funcionar. Precisamos pensar um passo a frente. Se não funcionar, o que fazemos? Por isso destaquei as ideias acima. São só algumas, há muitas outras na experiência internacional. Destaquei as que considerei menos controversas e mais fáceis de implementar. Não dá para supor que Lockdown será suficiente. Não hoje.
Por fim, destaco que nossa situação é MUITO crítica. Isso é o que mais queria ver autoridades dizendo. Povo tem direito de saber. Essa reabertura é por falta de opção, não por segurança. Avisem para cidadão se comportar de acordo. Copiem experiências de sucesso. Distribuam máscaras! E população, use!