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Antes de falarmos sobre o que seria um Teste de Turing Ideológico, é necessário antes saber o que é o Teste de Turing clássico. O Teste de Turing é uma ideia desenvolvida em 1950 por Alan Turing (sim, aquele Turing do filme) com o intuito de colocar critérios para aferir o grau de desenvolvimento da inteligência artificial de máquinas. Resumidamente, no experimento clássico, uma pessoa é colocada diante da tela de um computador que produzirá frases. Essas frases podem vir de uma pessoa de verdade do outro lado da tela, ou de algum tipo de inteligência artificial. Após certo tempo, a pessoa deve decidir se há ou não uma pessoa real escrevendo do outro lado da tela. Turing defendia que quando não formos capazes de diferenciar significativamente uma máquina de uma pessoa real nesse teste, então podemos dizer que a máquina pensa. (OBS: hoje já temos computadores e softwares com inteligência suficiente para passar nesse teste mantendo um diálogo com um humano.)

A ideia que gostaria de apresentar neste texto é a do Teste de Turing Ideológico, uma ideia exposta pela primeira vez em 2011 pelo economista Bryan Caplan em resposta a um artigo de jornal do também economista Paul Krugman. A ideia do teste é uma analogia direta com o Teste de Turing original. De acordo com o Google, este aqui é o primeiro texto a trazer a ideia para o português. Eu a resumiria da seguinte forma:

Uma pessoa agindo como juiz e aderente a uma ideologia (X) interage em uma conversação em linguagem comum com duas outras pessoas, uma (ou mais pessoas) que compartilham da mesma ideologia (X) do juiz, e uma é de outra ideologia (Y). Cada uma dessas pessoas deve argumentar como se fosse aderente da ideologia (X). Se o juiz não for capaz de diferenciar com robustez a pessoa que é da ideologia (X) da que é da ideologia (Y), afirma-se que a pessoa de ideologia (Y) passou no Teste de Turing Ideológico.

Falando de forma mais clara e resumida, esse experimento é uma forma de verificar na prática uma pergunta simples: você é capaz de defender um argumento ideológico com o qual você não concorda com qualidade suficiente para se passar por um verdadeiro defensor dessa ideologia? Se você acha que sim ou que não, de toda forma seria possível realizar esse teste e averiguar se você, eu ou qualquer outra pessoa é tão bom quanto acha que é em realmente conhecer o outro lado da história. Isso porque as pessoas são muito propensas a exagerar e criar espantalhos ao falar sobre a visão de quem discorda, tornando alguém com pouco conhecimento do “oponente” facilmente identificável.

Essa ideia do “Teste de Turing Ideológico” é muito recente e só vim a conhecê-la este mês. Porém achei-a muito produtiva principalmente do ponto de vista pedagógico. Em tempos onde a sociedade debate a proposta do Programa Escola sem Partido, é importante refletirmos sobre onde se situa a linha que separa alguém “doutrinado” de alguém “não-doutrinado”, se é que tal linha exista.

Embora pessoalmente eu não considere que seja possível traçar tal linha de forma clara e objetiva, não me parece impossível que existam diferentes intensidades de “doutrinação” de alguém. Ao perguntar a si mesmo “Eu seria capaz de defender um ponto de vista contrário ao meu tão bem quanto alguém que defende aquele ponto de vista?” sobre qualquer tema, tornamo-nos capazes de acessar informações que de outra forma ficariam escondidas dentro de nós.

Você pode discordar de uma certa visão liberal/conservadora/socialista, mas será que você discorda dela apenas pelo que você acha que ela diz sobre determinado problema, ou será que você discorda dela estando plenamente informado das nuances daquele pensamento, inclusive a ponto de conseguir se passar por um defensor dela se assim o quisesse?

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É possível tornar o teste cada vez mais sofisticado. Inicialmente, pode-se perguntar se você conseguiria se fazer passar por alguém que defende uma posição mas que nunca parou para refletir sobre a própria defesa (imagino que quase todo mundo consiga fazer isso, pois exige muito pouco raciocínio de nós mesmos). Em seguida, pode-se perguntar se você conseguiria redigir um texto para algum veículo de baixa qualidade com público cativo em um espectro ideológico sem ser notado pelos leitores, como um post no blog do Rodrigo Constantino ou no Brasil247, por exemplo.

Depois, pode-se perguntar se você conseguiria fazer o mesmo diante de um público com nível maior de especialização ideológica – digamos, uma conferência qualquer de algum partido. Em um nível ainda maior de dificuldade, que tal se o público fosse uma conferência acadêmica sobre algum assunto voltado para alguma ideologia ou defesa muito específica, você conseguiria se fazer passar por alguém avançando argumentos daquela ideologia na frente de professores, pesquisadores e estudantes dedicados de uma dada área?

Pensando em termos estritamente idealizados, imagino que em um ensino perfeitamente não-doutrinário, todos os alunos teriam que sair com níveis de sofisticação e pluralidade argumentativa suficientemente altos para passar em um Teste de Turing Ideológico ao menos equivalente ao do público médio ativamente engajado na defesa daquelas ideias. Isso envolveria saber se colocar na posição do outro, dominar pressupostos básicos de cada pensamento, trabalhar com hipóteses encadeadas umas nas outras, habilidade de diferenciar a reprodução de um argumento da defesa daquela posição… enfim, todas habilidades de raciocínio lógico avançado que dificilmente um sistema educacional extremamente precário como o nosso consegue formar, dado que não conseguimos sequer ensinar leitura básica de textos ou matemática simples.

Mas enfim… independentemente do que seria ou não generalizável na escala da sociedade, no limite pessoal mais extremo quase inalcançável: você seria capaz de defender uma visão contrária à sua em um dado tema, e convencer o maior especialista sobre aquele tema que faz uma defesa similar, de que você é um verdadeiro defensor da causa dele?

Se sim, então realmente me parece que ninguém terá a menor margem para dizer que você é um “doutrinado” naquele tema. Seja qual for a diferença de opiniões que vocês tenham com relação a esse assunto, ela não se deve ao seu desconhecimento do que está em jogo em sua complexidade e dificuldade reais, mas apenas pelos julgamentos valorativos diferentes que o fazem preferir a sua visão diante daquela que você discorda.

Talvez esse Teste de Turing Ideológico seja um desafio que valha a pena nos fazermos de vez em quando ou até ser ensinado. Não sei até que ponto faz algum sentido pensar nessa capacidade para a sociedade como um todo, mas ao menos para cada um de nós certamente nos levaria a debates mais inteligentes e produtivos sobre todos os assuntos da vida social.

E aí, o que vocês acharam dessa ideia? Topam o desafio?

Como exercício, no futuro publicarei texto de minha própria autoria criticando a ideia de que o Teste de Turing Ideológico faz algum sentido. Neste aqui propositalmente aparentei defender a ideia. Será que após ler minha própria crítica, você caro(a) leitor(a) conseguirá aferir qual delas reflete a minha posição verdadeira? Será uma versão diferente do teste (um mesmo autor expondo duas posições diferentes e contrárias entre si). Veremos o que acontece, rs.

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Doutor em Economia, professor do Insper e pesquisador do IDP-SP. Sócio e CEO da AED Consulting. Desde 2013 faço divulgação científica neste blog e nas redes sociais por paixão e convicção. Defendo políticas públicas baseadas em evidências e os princípios éticos do humanismo secular.

5 Responses to “Doutrinação e o Teste de Turing Ideológico”

  1. Igor Napoleão

    Instigante o texto e o desafio!
    Com todo o respeito e admiração por um cientista-ícone de minha juventude, penso quais seriam os critérios objetivos pelos quais o “juiz” deveria de balizar para decidir se o interlocutor “pensa” ou é “inteligente”. Da forma como proposto parece-me uma decisão subjetiva, sobretudo dependente do grau de conhecimento linguístico, lógico do juiz. Estou voando?
    De qualquer forma a metáfora é criativa, válida e original.

  2. Francisco Aragão

    Só avisando que quando o teste foi desenvolvido não havia computador com tela. O teste de Turing não precisa, nem tinha, tela de computador. Leia o artigo original …

  3. Wiliam Barbosa Rangel

    Caro Thomas! Fiz um curso de “Docência do Ensino Superior” na FGV, modalidade EaD, e nele havia atividades síncronas (um fórum, com horário combinado, e todos deveriam participar) e assíncronas (atividades feitas em grupo e enviadas ao Tutor). Numa destas atividades foi anunciado que o debate seria sobre as cotas nas universidades públicas. Eu sou contra, e entrei no fórum com “a faca nos dentes”. Só que não! Quando acessei o fórum (atrasado…) o debate já estava rolando e todos, literalmente todos, eram contra as cotas! Pensei rápido e decidi: alguém aqui tem que ser contra! E lá fui eu! Confesso que me saí muito bem, o debate transcorreu em clima de cordialidade, mas apanhei pra burro! Eu encontrei argumentos para defender as cotas que até hoje eu não sei de onde eu fui capaz de tirar. Ganhei elogios da Tutora pela sustentação do debate, e só então, em off, expliquei a ela o que havia se passado. Eu continuo contra as cotas! De verdade! Mas passei no Teste de Turing Ideológico. Pelo menos até ler o seu próximo artigo… Excelente artigo! Provocativo e instigante! Parabéns!

  4. David Chimango

    Bom dia Thomas ! Li o seu texto cerca de duas semanas atrás e achei interessantíssimo, nunca havia escutado falar sobre.Eu estou prestes a aplicar em uma aula de sociologia do Ensino Médio o teste de Touring Ideológico. Vou compartilhar contigo o resultado depois de feito, por enquanto, estou organizando a metodologia para aplicá-lo. A turma achou a dinâmica interessante e está bem engajada. Vamos utilizar de assuntos polêmicos do nosso dia-a-dia para organizar os debates. E parabéns ! É muito interessante refletirmos dessa forma, e o texto foi muito bem formulado.

  5. Rodrigo

    Cara, muito bacana o tema!! Gostaria de relatar que na minha graduação um professor utilizava uma metodologia semelhante como estratégia pedagógica.
    Deveríamos assumir a posição de um determinado autor em contraposição a outro, mesmo não concordando com a posição assumida. É uma estratégia interessante de ensino e uma experiência enriquecedora.

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