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O post dessa semana será uma tradução inédita para o português de um documento da história americana relativo à primeira imigração dos chineses para a Califórnia. Tive contato com esse documento devido à minha pesquisa de mestrado, que devo concluir até março do ano que vem. Enfim, o texto original foi publicado por Norman Asing no jornal Daily Alta California, em São Francisco no dia 5 de maio de 1852.

A Califórnia tinha alguns milhares de imigrantes chineses em 1850. Em 1852, o número tinha subido para 20.000, constituindo quase 25% da força de trabalho da Califórnia. Os chineses que trabalhavam nas minas e como donos de loja eram bem vindos, até mesmo recrutados – em um primeiro momento. Porém o sentimento nativo para cortar a imigração chinesa aumentou conforme o número de imigrantes também aumentava. John Bigler, o terceiro governador da Califórnia, pediu por restrições à imigração em 1852, citando a inabilidade dos imigrantes chineses de se assimilar como tinham os imigrantes europeus. Norman Asing, um dono de restaurante e líder da comunidade chinesa de São Francisco, criticou o governador por sua posição anti-chinesa e utilizou nada menos do que a Declaração de Independência e a Constituição dos Estados Unidos contra os argumentos de Bigler sobre o perigo da imigração chinesa. Porém o argumento de Asing também abarcava alguns dos pressupostos racistas do período sobre os Afro-Americanos e os Americanos Nativos.

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Trabalhadores em garimpo de ouro na Califórnia, dentre eles alguns chineses. Fonte: Head of Auburn Ravine, 1852, Collection of California State Library

Segue abaixo a tradução inédita que fiz do texto de Asing, na íntegra:


À SUA EXCELÊNCIA GOVERNADOR BIGLER

Senhor: eu sou um chinês, um republicano, e um amante das instituições livres; sou muito apegado aos princípios do governo dos Estados Unidos, e portanto tomo a liberdade de adereçar você enquanto chefe do governo deste Estado. Sua posição oficial lhe garante grande oportunidade para o bem e o mal. Suas opiniões através de uma mensagem ao corpo legislativo têm peso e, talvez mais que nenhuma outra para o povo, pois o efeito da sua última mensagem foi até agora prejudicar a opinião pública contra o meu povo, permitindo àqueles que esperam uma oportunidade de persegui-los, e roubá-los das recompensas de seus esforços. Você pode não ter intencionado que isso acontecesse, porém você pode ver qual será o resultado das suas proposições.

Eu não sou muito afeito à sua lógica, que ao excluir a população desse Estado você aprimora sua riqueza. Eu sempre considerei que a população é a riqueza; particularmente a população de produtores, de homens que através do trabalho de suas mãos ou intelecto, enriquecem os armazéns ou os celeiros do país com os produtos da natureza e da arte. Você está profundamente convencido quando diz “que para aprimorar a prosperidade e preservar a tranquilidade deste Estado, a imigração asiática deve entrar em cheque.” Isso, sua Excelência, é nada mais que um passo em direção a um movimento retrógrado do governo, que, ao refletir, você descobrirá; e o qual os cidadãos deste país não devem nunca tolerar. Foi uma das principais causas da querela entre vocês (quando colônias) e a Inglaterra; quando esta passou leis contra a emigração, vocês buscaram a imigração; ela veio, e a imigração fez de vocês o que vocês são – sua nação o que ela é. Ela transferiu vocês de uma vez da infância para a virilidade e fez de vocês grandes e respeitáveis por todas as nações da terra. Estou certo de que sua Excelência não pode, se quisesse, prevenir-se de ser chamado de descendente de um imigrante, porque estou certo de que você não se orgulha de ser descendente do homem vermelho. Mas a sua lógica seguinte é mais repreensível. Você argumenta que essa é uma república de uma raça em particular – que a Constituição dos Estados Unidos admite nenhum refúgio para qualquer outro além da face pálida. Essa proposição é falsa ao extremo, e você sabe disso. A declaração da sua independência, e todos os atos do seu governo, do seu povo, e da sua história estão todos contra você.

É verdade, vocês degradaram os negros porque o aprisionaram em servidão involuntária, e porque em nome da união em alguns de seus estados ela foi tolerada, e em meio a essa classe você se esforça para nos colocar; e sem dúvida seria agradável a alguns pretensos homens livres rotular-nos com a marca da servidão. Mas nós gostaríamos de lembrá-lo de que quando a sua nação era uma selva, e a nação da qual vocês emergiram era bárbara, nós já exercitávamos as artes e virtudes da vida civilizada; que nós somos possuidores de uma linguagem e uma literatura, e que homens habilidosos na ciência e nas artes são numerosos entre nós; que as produções de nossas manufaturas, nossos veleiros, e oficinas, formam uma parcela considerável do comércio mundial; e que por séculos, faculdades, escolas, instituições de caridade, asilos, e hospitais, foram tão comuns quanto em suas terras. Que nosso povo não possa ser reprovado por sua ociosidade, e que seus historiadores tenham-no dado o devido crédito pela variedade e riqueza de seus trabalhos na arte, pela sua simplicidade de conduta, e particularmente pela sua indústria. E nós fazemos questão de lembrar que, no que concerne a história da nossa raça na Califórnia, ela estampa com o teste da verdade o fato de que nós não somos a raça degenerada que você faz de nós. Nós viemos até vocês como mecânicos ou mercadores, e seguindo todos os honoráveis negócios da vida. Você não nos encontra perseguindo ocupações de caráter degradante, a menos que você considere o trabalho degradante, o que estou certo de que você não o faz; e se os seus compatriotas poupam o produto da indústria deles da taverna e da casa de apostas para gastá-lo com fazendas ou lotes de terra ou em seus famílias, certamente você irá admitir que mesmo essas são virtudes. Você diz que “você deseja ver inalterada a política generosa deste governo no que concerne aos europeus.” Está fora do nosso poder dizer, entretanto, de que modo ou a quem essas doutrinas da Constituição devem ser aplicadas. Você não tem nenhum direito de propor uma medida para checar a imigração do que o direito de mandar uma mensagem para a Legislatura sobre o assunto. No que concerne a cor e complexidade de nossa raça, nós estamos perfeitamente cientes de que nossa população tem sido um pouco mais que a de vocês.

Sua Excelência descobrirá, entretanto, que nós somos tão aliados à raça africana e os homens vermelhos quanto vocês o são, e no que tange à aristocracia da pele, a nossa se compara com muitas das raças europeias; nem nós consideramos que a sua Excelência, como um democrata, nos fará acreditar que os construtores da sua declaração de direitos em algum momento sugeriram a propriedade de estabelecer uma aristocracia de pele. Eu sou um cidadão naturalizado, sua Excelência, de Charleston, Carolina do Sul, e um Cristão, também; e assim espero que você se posicionará corrigido em sua afirmação “que nenhuma classe asiática” tal como lhe agrada chamá-la, aplicou-se aos benefícios do ato de naturalização. Eu poderia apontá-lo numerosos cidadãos, por todo o continente, que fizeram proveito da sua hospitalidade e cidadania, e eu o desafio a dizer que nossa raça em algum momento abusou dessa hospitalidade ou perdido o direito neste ou em qualquer governo da América do Sul devido à infrações nas leis dos países pelos quais ela passa. Você nos encontra peculiarmente pacíficos e ordeiros. Não custa muito ao seu Estado nossas acusações criminais. Nós pedimos menos às suas cortes por reparações e, ao menos que eu saiba, não há nenhum que pese sobre o seu Estado como indigentes.

Você diz que “ouro, com seu poder talismânico, sobrepujou os hábitos naturais de não-interação que nós temos exibido.” Eu lhe pergunto, não teve o ouro o mesmo efeito sobre o seu povo, e o povo de outros países que cá migraram? Por que, foi o ouro que preencheu seu país (anteriormente um deserto) com pessoas, preencheu seus portos com navios e abriu nossas cobiçadas trocas ao empreendimento dos seus mercadores.

Você não pode, face aos fatos que o encaram de frente, afirmar que a avareza da qual vocês falam é apenas de vocês; de modo que sua Excelência perceberá que nessa era não se conta com uma mudança na avareza. Milhares dos seus cidadãos vêm aqui para cavar por ouro, com a ideia de retornar tão depressa quanto puderem

Nós pensamos que você está equivocado, entretanto, nesse respeito, pois muitos de nós, e muitos mais, adquirirão um domicílio entre vocês.

Mas, por agora, eu devo deixa sua Excelência, e devo finalizar essa questão em uma outra oportunidade na qual espero que você levará em consideração em um espírito de franqueza. Seu predecessor seguiu uma linha de conduta diferente a nosso respeito, como deve aparecer por referência à mensagem dele.

Eu tenho a honra de ser um servo muito obediente da sua Excelência,

NORMAN ASING

O que esse texto mostra a meu ver é a tensão entre os ideais do liberalismo político com as tensões práticas do liberalismo econômico. A imigração dos chineses foi estimulada em 1849, e durante dois ou três anos foram poucos os conflitos entre americanos e imigrantes, pois o ouro era abundante e imaginava-se ter espaço para todos. Porém, na medida em que essa situação foi mudando e explodia o tamanho da população da Califórnia, esse contexto se reverteu e rapidamente a concorrência entre os garimpeiros e entre donos de minas de ouro tornou-se uma rivalidade onde a solução caminhou para a exclusão do elo mais fraco – como é de costume ao longo da história, vale dizer.

O governador John Bigler nunca respondeu a carta de Norman Asing e as medidas contra os chineses foram passadas no Estado da Califórnia pouco tempo depois.

Doutor em Economia, professor do Insper e pesquisador do IDP-SP. Sócio e CEO da AED Consulting. Desde 2013 faço divulgação científica neste blog e nas redes sociais por paixão e convicção. Defendo políticas públicas baseadas em evidências e os princípios éticos do humanismo secular.

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