No Brasil, a ascensão da “bancada evangélica” é um fenômeno recente que tem ganhado destaque na mídia nos últimos tempos. Já nos EUA, a política nacional é conhecida pela grande presença do ativismo religioso e demonstrações alarmantes de preconceito nas pautas de discussão, via de regra relacionadas com o Partido Republicano (GOP), conservador – mas nem sempre as coisas foram assim. Será que o Brasil pode se tornar um novo Estados Unidos na questão de transpor questões religiosas para a política?
Falar sobre religião exige cuidado, principalmente quando a intenção não é jogar lenha na fogueira das polêmicas desnecessárias. Como todo bom seguidor da Constituição, sou a favor da laicidade do Estado. Dito isso, cabe cortar pela raiz certos mal-entendidos.
Em primeiro lugar, a histórica participação de vasta maioria católica no Brasil torna difícil falar de um ‘Estado laico’ ideal e puro: a ética e visão de mundo cristã, isto é, a conduta ou o modo que pensamos e agimos, faz parte de nosso inconsciente, quer gostemos ou não. Por aqui, assim como nos EUA, independentemente da interferência direta da religião no Estado, está ainda longe do horizonte de possibilidades um candidato a presidente abertamente ateu ter alguma chance de ganhar eleições. Nesse quadro, em segundo lugar, torna-se necessário escolher o que entendemos por ‘interferência da religião na política’: neste artigo, o objeto de estudo será a emergência de políticos, partidos e alianças que têm como plataforma principal de atuação a defesa estrita e irredutível apenas dos valores associados a uma crença (a deles mesmos). No caso brasileiro minha ênfase será na bancada evangélica, mas apenas pelo motivo de estar em franco processo de expansão e ser o assunto da vez das últimas semanas, desde a posse de Marco Feliciano na presidência da CDHM.
População e distribuição regional – Brasil e Estados Unidos
Nos Estados Unidos, ainda que o percentual de pessoas que afirmem que a religião tenha um papel muito importante nas suas vidas seja alto (59%), uma característica única entre todos os países desenvolvidos, a associação da religião com o conservadorismo político está mais fortemente concentrada no chamado ‘Bible Belt’ (Cinturão da Bíblia).
No Brasil, essa população é muito mais dispersa pelo território, ainda que alguns pontos de maior concentração possam ser apontados. A população protestante aumentou de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010, um aumento de 16 milhões de habitantes.
Impacto da distribuição populacional na representação política
Nos Estados Unidos, ainda que haja grande influência do ativismo religioso na política, gerando demonstrações horríveis de preconceito, racismo e discriminação, seu poder de pressão é mais restrito do que pode vir a ser no Brasil. Isso porque nos EUA a eleição nacional é feita pelo sistema de colégio eleitoral. Em resumo, o presidente é eleito por voto indireto: são os membros do Congresso, representantes de cada Estado, que elegem o presidente. Assim, num Estado como a Flórida, que tem 29 Congressistas, caso um candidato ganhe por 2.000 votos que sejam (como o fez Bush após a recontagem), ele leva todos os 29 votos do Estado pelo colégio eleitoral. Assim, no sistema americano, ainda que improvável, é possível que um presidente seja eleito com menos de 50% dos votos da população, basta que ele ganhe nos Estados de maior peso no colégio.
Isso gera uma dinâmica política muito diferente da brasileira. O ‘Cinturão da Bíblia’ tem muito menos capacidade de pressão no sistema americano. Dado que são vasta maioria nesses lugares, é garantido que seus votos do Colégio Eleitoral irão todos para os Republicanos, e assim os Democratas não precisam gastar tempo, energia e fazer concessões políticas tentando ganhar os votos desses segmentos. O embate entre essas visões acaba ficando para os chamados ‘Estados Indecisos’ (em cinza no gráfico) que podem pender tanto para os democratas quanto os republicanos. Nesses Estados, a briga é pelos chamados ‘eleitores independentes’, que não têm partido pré-definido.
No Brasil, a dinâmica política causada pela ascensão do “voto de cajado” é potencialmente mais preocupante. Sendo um fenômeno ainda recente e num país onde os limites entre direita e esquerda são no mínimo nebulosos, nenhum político pode realmente abrir mão do apoio desses eleitores, em qualquer esfera da federação. O controverso deputado Marco Feliciano, que de bobo não tem nada, evidenciou bem esse fato ao sinalizar que Dilma pode sofrer perda de apoio dos evangélicos por não se posicionar na defesa dele. Ainda que na entrevista o deputado tenha superestimado o número de evangélicos no país, é relevante notar que em meio à inundação de críticas que a população fez a Feliciano, a presidenta não tenha pronunciado uma única palavra. Não apenas isso, como já a própria presidência da Comissão de Direitos Humanos foi uma “concessão” do PT em favor do PSC.
É importante notar outro problema trazido a tona pela lógica da fé na política. Por que Feliciano ainda não renunciou ao seu cargo, dada as imensas críticas que recebeu? Na fusão entre fé e política que levou à sua eleição, renunciar de fato não faz o menor sentido. As pessoas insatisfeitas jamais votariam nele, independentemente do que ele fizer, ao passo que seus eleitores querem que ele faça justamente o que ele está fazendo: impedindo o avanço de uma imaginária “ditadura gay” (infinitas aspas) no país. Renunciar apenas faria com que ele desagradasse os únicos que de fato votariam nele e que não vão mudar de opinião não importa o quanto o restante do país esteja insatisfeito. Sem dispositivos de revogabilidade imediata dos cargos, a democracia brasileira se vê refém de eleitores fundamentalistas.
Politização da moral religiosa
Uma coisa é apontar como a disputa entre os partidos políticos pode se desenvolver, outra é como os religiosos da base irão se filiar a esses partidos. Nos Estados Unidos, o fortalecimento da religião na política começou em meados da década de 60, porém foi apenas na década de 70 que a ‘Nova Direita’ tomou como pauta a politização das igrejas fundamentalistas, pentecostais e carismáticas sob a pauta da “Maioria Moral“. Em 1980, Paul Weyrich dizia: “Estamos falando de Cristianizar a América. Estamos simplesmente falando da difusão do evangelho em um contexto político.” Após isso, o movimento ganhou força sob outras lideranças. Em 1994, o termo “valores da família” já era associado diretamente ao Partido Republicano. Em 2004, a plataforma política de Bush colocava explicitamente a pauta de “Proteger as Famílias” como eixo eleitoral.
No Brasil, as coisas ainda não chegaram nesse ponto, mas tudo indica que é apenas uma questão de tempo. Enquanto a ACEB pedia o fim do ‘voto de cajado’, o número de deputados que se afirmam da ‘bancada evangélica’ subiu de 47 para 76. Nos EUA também houve, e ainda há, oposição de algumas associações religiosas quantoao uso da fé para fins eleitorais, mas nunca tiveram grande apelo em seus meios. Por aqui não há razão para pensar que seria diferente.
Aqui no Brasil, onde esse desenvolvimento é mais recente, ainda resta sabermos que partidos farão a politização primeiro, e quais outros posicionamentos políticos eles irão acatar em outras questões importantes, como a economia, relações externas, políticas sociais, etc. Por enquanto, o PSC e o PRB são os partidos com o maior proporção de evangélicos. Contudo, dado que a bancada evangélica como um todo, se unida, já seria o 3º maior partido brasileiro, atrás apenas do PT e do PMDB, há motivos para consideramos que novas alianças ou fusões partidárias no futuro possam consolidar de vez esses votos.
Tendências futuras e opinião pessoal
Ainda é cedo para termos certeza, porém a menos que a tradição política do Brasil mude radicalmente nas próximas décadas, acredito que a tendência é a bancada evangélica constituir um segundo ‘centrão’ na câmara, tal como o PMDB.
Com grande número de parlamentares, alta capacidade de mobilização de votos e sem uma diretriz política bem definida, a bancada conseguiria se perpetuar em posições importantes da política brasileira, exigindo concessões de seus aliados na proteção dos valores conservadores quanto à família, direitos das mulheres e homossexuais, aborto, etc, travando indefinidamente esses avanços sob pena de apoiar opositores ou de bloquear a votação de outras propostas.
Já vimos isso acontecendo em menor escala no ano passado, quando a proximidade da votação do código florestal e da regulação do consumo de bebidas alcoólicas nos estádios da copa levou a uma aliança entre a bancada evangélica e a bancada ruralista no congresso.
Para nós que acompanhamos as notícias da política dos Estados Unidos, vemos horrendas demonstrações de machismo e misoginia: a trágica polêmica do então candidato favorito a senador pelo Estado do Missouri, Todd Akin, de que “se o estupro for legítimo há uma chance menor de gravidez”; ou os comentários do também candidato nomeado ao senado, Richard Murdock, de que as mulheres vítimas de estupro deveriam ter “rezado mais forte‘); ou, como se já não fosse o bastante, temos ainda os surtos mágicos que levaram o ex-presidente George W. Bush a dizer que “Deus disse para mim acabar com a tirania no Iraque“.
Notar que naquele país a estrutura política na verdade colabora mais para frear a participação dessa racionalidade da fé na política do que a estrutura do Brasil é, no mínimo, alarmante. Não devemos subestimar a importância dos movimentos desses setores na política nos próximos anos.
Tendo em vista todo esse quadro, na minha opinião como defensor da laicidade do Estado, a conjectura mais sombria seria: o atual incremento de 1,6 milhões de evangélicos por ano na população, que chegaria aos 50% do total de habitantes por volta da década de 2030, traduzindo-se politicamente, levaria a atual reorganização católica também a uma radicalização política. Ainda que haja grandes divergências entre essas religiões, a moral defendida é muito próxima, podendo atravancar seriamente as tentativas de avanço nas políticas de igualdade e de ações afirmativas.
Espero ter colocado informações úteis para pensarmos a relação entre política e religião no Brasil. Qual a sua opinião sobre isso? Sinta-se livre para colocá-la nos comentários!
Gostei muito do seu texto Thomas (como todos no blog até agora), mas eu gostaria de acrescentar algumas observações sobre fatores institucionais da política americana que contribuem para a penetração da religião no debate político.
Em primeiro lugar, acredito que o sistema distrital e presidencialista (os EUA são o único país que eu sei que combina estas duas características) contribui para a personificação da política americana, sem paralelo no mundo desenvolvido. Esta personificação da política se manifesta na imensa importância dada pelos eleitores à vida privada (incluindo religiosa) de seus candidatos. Dessa forma, a eleição de uma candidata como a Dilma (2X divorciada, apenas nominalmente católica e com um passado que causa ojeriza a boa parte do eleitorado) está totalmente fora de questão nos EUA. Acredito que, embora o Brasil tenha uma política relativamente personificada, não chegamos perto da situação norte-americana.
Outro fator é o sistema bipartidário, que concentra vários setores da população conservadora em um mesmo partido, acaba contribuindo para a contaminação de parcelas maiores da população por ideias religiosas radicais. Além disso, o voto facultativo e o sistema de primárias tira o foco dos candidatos de conquistar o eleitor independente (mais centrista) em favor da mobilização das bases, levando a uma maior radicalização. O sistema arcaico das primárias é ainda mais decisivo, pois dá muito poder a um estado extremamente conservador (Iowa) e ainda possui estados com o sistema de “Caucus”, que facilita a coerção dos eleitores por lideranças religiosas.
Mais um fator importante a ser considerado é o poderoso sistema de lobby (legalizado e regularizado) que foi muito bem utilizado pelas entidades religiosas, que desta forma possuem grandes e ricos escritórios em Washington com o objetivo de influenciar na política. Além disso, outra forma de lobby são os PACs, instituições formadas pela sociedade civil que fazem propaganda (incluindo TV, rádio, palestras, etc.) para apoiar determinadas políticas ou candidatos, o que seria um fator muito positivo se não fosse o fato de que são os setores religiosos e empresarias os que tem a melhor capacidade de coordenar capital nesses projetos.
Apesar disso, concordo que alguns fatores institucionais ajudam a controlar os ímpetos por um estado cristão presentes na sociedade americana. O principal deles, acredito ser o ativo papel da Suprema Corte em barrar leis que atentem claramente contra o Estado laico. O mais importante exemplo disso é o fato de que o aborto nos EUA é legalizado desde 1973 graças a uma decisão da Suprema Corte (caso Roe vs. Wade).
Além disso, há o dual papel exercido pela grande autonomia dada aos estados e às entidades municipais. Isso permite que no mesmo país (às vezes até no mesmo estado) convivam projetos extremamente conservadores e liberais de sociedade. Podemos ver isso nos recentes movimentos políticos locais que levaram tanto à exigência de realização de uma ultrassonografia transvaginal para realizar o aborto em diversos estados como aos estados de Washington e Colorado se tornarem os primeiros lugares do mundo com a legalização total da produção e venda de maconha.
Apenas escrevi tudo isso para argumentar que, para mim, a institucionalidade política norte-americana, no geral, contribui para a grande influência que a religião tem na política deste país. Isso apesar de haverem ainda alguns fatores que ajudam a frear este movimento. Acredito que no Brasil ainda não tenhamos tantos fatores institucionais que ajudem o lobby evangélico, embora isso não me tranquilize muito quando vejo o crescente poder destas igrejas. *Desculpe os erros ortográficos e gramaticais, que imagino serem muitos.
Olá João Paulo, obrigado pelo excelente e erudito comentário!! Adicionou muita coisa importante que não tive como colocar no texto!
Concordo que algumas instituições dos EUA contribuam mais para a entrada da religião na política do que aqui no Brasil, mas não acho que isso seja tão forte assim a ponto de contribuir mais do que freia.
De tudo que você colocou, acho que o mais importante e decisivo é mesmo o sistema de primárias. Os Republicanos mais moderados são numericamente incapazes de vencer as primárias sem ceder seja para o Tea Party, seja para os fundamentalistas cristãos.
Quanto a parte da personificação da política, o sistema bipartidário e a questão dos lobbies acho que seus efeitos são mais difíceis de precisar. Se por um lado nos EUA um líder político pode ascender facilmente pelo carisma ou decair rapidamente pela moral passada ou presente, para o efeito de eleger um pretenso representante de Deus na política isso pode jogar tanto para um lado quanto para o outro. No Brasil, esse aparente descaso talvez não seja tão descaso assim: são os brasileiros que não ligaram para o passado da Dilma ou foi a enorme personificação da política na figura do Lula que conseguiu alavancar sua escolhida a despeito dos fatores que jogavam contra? Acho que você está coberto de razão ao constatar que com o passado que tem a Dilma nunca seria eleita pelo eleitorado americano. Porém, se por aqui de fato nos importamos menos com isso, é possível que no futuro alguém com um histórico cravado em preconceitos religiosos possa também chegar no poder, pelas vias da ‘indiferença’.
Da parte do sistema bipartidário, excluindo o caso das primárias, também acho que ele pode pender para os dois lados. Se de um lado ele favorece a concentração dos radicais religiosos em um único partido, fortalecendo-o, também permite ao partido opositor manter suas pautas sem fazer grandes concessões, ao concentrar a parcela da população avessa a esse tipo de jogo de interesses com a fé. No Brasil, o sistema pluripartidário pode mesmo ‘pulverizar’ parte da influência da bancada evangélica, mas essa mesma pulverização permite que eles tenham capacidade de barganhar com os partidos opositores, que não tem como ter certeza sobre quanto do seu eleitorado não seria perdido ao confrontar os interesses da bancada. Minha perspectiva da possibilidade de um ‘centrão’ evangélico capaz de minar o avanço das políticas de igualdade no país partem justamente dessa problemática.
Da parte dos lobbies, sei bem como eles funcionam nos EUA, mas receio não ter informações suficientes sobre a situação destes no Brasil (além do fato de que são supostamente ilegais). Usando bom senso, que sem dúvida pode estar errado, arriscaria dizer que os pastores que compõem a bancada evangélica em geral possuem grande capacidade de auto-financiamento e, portanto, de pressão sobre o sistema político brasileiro já aberto à corrupção. Dada a compra cada vez maior de espaço nas emissoras de televisão por parte de pastores, imagino que financiamento de campanha e espaço de marketing eleitoral não são problema no Brasil. No mínimo, chutaria que o potencial de lobby desse setor é tão forte aqui quanto nos Estados Unidos, guardadas as proporções de riqueza entre os países.
É por isso que no agregado considero que por lá existam mais freios que aqui. Embora por lá a política em geral sofra com a influência da religião, poderíamos dizer que há um limite superior claro: podem no máximo tomar conta por completo do Partido Republicano, o que ainda não conseguiram totalmente, apesar de arrancarem todo tipo de concessão nas primárias. Agora, depois disso, esses interesses têm de enfrentar os Democratas, que não precisam fazer grandes concessões a esses interesses (basta o candidato dizer que acredita em Deus e falar ‘God Bless America’). Por aqui a união dos interesses religiosos evangélicos em um partido ainda não aconteceu e pode estar longe de acontecer, mas apenas com o crescente número de votos esses grupos conseguem obter um poder de barganha muito maior sobre os outros partidos do que nos EUA. Talvez por aqui o esquema não tenda a se radicalizar tanto como ocorre nos EUA, mas rapidamente a bancada pode ser capaz de conseguir barrar diversas propostas e negociar por leis conforme sua moral particularista tendo por base o medo dos demais partidos de ter uma fuga de votos – problema que a política nacional dos EUA ainda não chegou a ter sobre o radicalismo religioso. Por fim, acredito que o principal fator institucional de impulso aos evangélicos na política brasileira é a taxa de crescimento de 1,6 milhões de pessoas por ano formando uma base eleitoral maciça em expansão, enquanto nos EUA a parcela radical da população tem se mantido estável.
Valeu mesmo pelo comentário, JP! Fico feliz que tenha gostado dos textos até agora e fico feliz também em saber da existência de mais colega vidrado na política americana, haha! Abraços!!