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O artigo que se segue é uma tradução literal que fiz de um texto de autoria de Katie Johnston, uma escritora de Boston, publicado em 16 de janeiro de 2013 no site da revista Forbes, e que versa sobre o trabalho da pesquisadora de Harvard Caitlin Rosenthal, historiadora especializada em história empresarial. O artigo original, em inglês, pode ser lido na íntegra aqui. Só ontem tomei conhecimento do estudo dessa autora, sendo o conteúdo aqui colocado fundamentalmente novo para mim também. Porém, como a história econômica dos Estados Unidos e do gerenciamento moderno é também meu tema de pesquisa de mestrado, tomei apenas a liberdade de acrescentar notas de rodapé para auxiliar na compreensão do texto.

A Complicada Ligação entre os Donos de Escravos e o Gerenciamento Moderno

(“The Messy Link Between Slave Owners And Modern Management”)

Enquanto estudava a história das práticas dos negócios, a pesquisadora Caitlin Rosenthal da HBS fez uma descoberta estonteante: muitas das técnicas adotadas pela primeira vez por donos de escravos nos 1800s são largamente utilizadas no gerenciamento moderno hoje. Rosenthal discute suas descobertas nessa história por Katie Johnston, que apareceu pela primeira vez no site HBS Working Knowledge.

Caitlin C. Rosenthal não pretendia escrever um livro sobre a escravidão. Ela começara com o intuito de abordar algo muito mais mundano: a história das práticas de negócios. Mas quando ela começou a pesquisar os livros contábeis de meados do século XIX, um período de grande desenvolvimento econômico durante a ascensão da industrialização nos Estados Unidos, Rosenthal se deparou com uma fonte inesperada de inovação.

Rosenthal, uma associada da Harvard-Newcomen em história empresarial na Escola de Negócios de Harvard, descobriu que os grandes latifúndios sulistas[1] mantinham registros complexos e meticulosos, mensurando a produtividade de seus escravos e cuidadosamente monitorando seus lucros – comummente usando métodos até mais sofisticados que os manufatureiros do Norte. Diversas práticas dos donos de escravos, tais como incentivar os trabalhadores (nesse caso, fazê-los colher mais algodão) e contabilizar a depreciação de seu valor através dos anos, são amplamente utilizadas no gerenciamento dos negócios hoje.

Fascinante como são suas descobertas, Rosenthal teve alguns infortúnios sobre suas implicações. Ela não queria ser percebida como dizendo algo positivo sobre a escravidão. Pelo contrário, ela vê a sua pesquisa como uma crítica do capitalismo – uma que poderia alargar o entendimento das práticas de negócios contemporâneas.

O trabalho é parte do seu atual projeto de livro, “Da Escravidão ao Gerenciamento Científico: Capitalismo e Controle na America, 1754-1911” (“From Slavery to Scientific Management: Capitalism and Control in America, 1754-1911,”), e a coleção editada porvir “Capitalismo dos Escravos” (Slavery’s Capitalism).

A evolução do gerenciamento moderno é usualmente associada com a boa e velha inteligência e ingenuidade – “uma gloriosa marcha de invenções que vai dos teares têxteis ao computador”, diz Rosenthal. Mas na realidade, é muito mais bagunçado que isso. O capitalismo não é apenas sobre o livre mercado; foi também construído nas costas de escravos que eram literalmente o oposto de livres.

“É uma questão muito maior, mais poderosa de ser feita, se hoje nós estamos usando técnicas de gerenciamento que foram também usadas nas plantações de escravos”, diz ela, “quão mais cuidadosos nós temos que ser? Quanto mais nós precisamos pensar sobre nossa responsabilidade com relação às pessoas?”

Proprietários Ausentes


De acordo com Rosenthal, a história dos registros detalhados das plantações vai até pelo menos a década de 1750 na Jamaica e Barbados. Quando donos de escravos ricos nas Índias Ocidentais começar a deixar outros encarregados de suas plantações, ela descobriu, eles passavam a pedir memorandos regulares sobre como seus negócios estavam indo. Alguns historiadores vêem a ascensão da propriedade ausente como um sinal de declínio, mas isso está também entre as primeiras instâncias da separação da propriedade e a gestão, Rosenthal diz – um marco na história do capitalismo[2].

Donos de escravos eram capazes de coletar dados sobre sua força de trabalho por vias que outros donos de negócios não podiam porque eles tinham controle completo sobre seus trabalhadores. Eles não precisavam se preocupar com a renovação ou recrutamento de novos trabalhadores, e podiam fazer experimentos com diferentes táticas – movimentando os trabalhadores por aí e demandando níveis maiores de produção, até mesmo monitorando o que eles comiam e por quanto tempo novas mães amamentavam seus filhos. E os escravos não tinham como fazer objeções.

“Se você tentasse fazer isso com um trabalhador do norte,” diz Rosenthal, “eles simplesmente se demitiriam”.

A adoção generalizada dessas técnicas de contabilidade é parcialmente devido a um agricultor e contador do Mississippi chamado Thomas Affleck, que desenvolveu livros para latifundiários que os permitiram fazer cálculos mais sofisticados e medir a produtividade de forma padronizada.

Rastrear essa informação permitiu aos latifundiários determinar qual a extensão com que pudiam puxar seus trabalhadores para obter o maior lucro. Usando os livros contábeis, donos de escravos podiam ver quantas libras-peso de algodão cada escravo colhia e compará-las com sua produção dos anos anteriores – e então criar requerimentos mínimos baseados nesses cálculos.

Olhando para o futuro

Isso levou os proprietários a fazer novos experimentos com métodos de aumentar o ritmo do trabalho, explica Rosenthal, tais como realizar campeonatos com pequenos prêmios em dinheiro para aqueles que pegavam a maior quantia de algodão, e depois requisitar dos vencedores que pegassem sempre aquela quantia de algodão dali para frente. As narrativas sobre escravos descrevem como outros usavam os dados para calcular punições, autorizando chicotadas de acordo com quantas libras-peso cada colhedor ficou aquém do esperado.

Planos similares de incentivos reapareceram nas fábricas de início do século XX[3], com gerentes balançando a promessa de recompensas em dinheiro se seus trabalhadores atingissem certos níveis de produção.

Latifundiários também usavam incentivos de grupo para encorajar a honestidade, administrando um barril de milho para cada mão com a precaução de que se qualquer coisa fosse roubada da fazenda e ninguém denunciasse o ladrão, o dobro do valor daquele milho seria deduzido do prêmio de Natal de cada um. Punições coletivas mais tarde seriam adotadas por vendedores e companhias como a Singer Sewing Company (Companhia Tecelã de Singer) para encorajar os trabalhadores a policiar uns aos outros.

Rosenthal diz que a ascensão das ferrovias é comumente creditada com a criação de novas unidades de produção, incluindo os custos por milhas-peso[4], porém a unidade comparável da escravidão “pacotes por primeira mão” foi desenvolvida antes no século XIX. Comparando o número de pacotes de algodão que diferentes trabalhadores produziam com trabalhadores similares de outras fazendas, os latifundiários calculavam o valor de cada escravo. Um saudável homem de 30 anos, por exemplo, seria considerado um trabalhador conhecido como uma mão, enquanto uma criança pode ser registrada como meia mão, e um escravo mais velho pode ser 3/4 de uma mão. Descobrir o número total de “mãos” em uma fazenda permitia aos proprietários e supervisores comparar seus resultados.

O conceito de depreciação é também creditado à era da ferrovia, quando proprietários de ferrovias alocavam o custo de seus trens ao longo do tempo, porém Rosenthal aponta que proprietários de escravos estavam fazendo isso anteriormente. Começando em fins da década de 1840, os livros de contabilidade de Thomas Affleck instruíam os latifundiários à registrar a depreciação ou apreciação dos escravos em seus balanços. Em 1861, por exemplo, outro latifundiário do Mississippi precificou seu supervisor de 48 anos, Hércules, em US$500; registrou o valor de Middleton, uma mão-produtora topo de linha de 26 anos, em US$1.500; e deu ao George Washington de 9 meses de idade o valor de US$150. No fim do ano, ele repetiu esse processo, ajustando as mudanças na saúde e nos preços de mercado, e a diferença em preço foi registrada nos balanços finais.

Esses livros de contabilidade tiveram um papel em reduzir escravos à “capital humano”, diz Rosenthal, permitindo proprietários que eram removidos das operações diárias ver seus escravos como ativos, como unidades intercambiáveis de produção em um registro, ao invés de pessoas.

Rosenthal está ciente que o que começou como uma objetiva história das práticas de negócios poderia se tornar altamente controversa, com alguns interpretando erroneamente sua pesquisa como um tipo de justificação da escravidão. Ao invés disso, ela quer que sua pesquisa informe os gerentes e companhias para se tornarem mais cientes do complicado legado das práticas atuais de negócios e a origem de algumas práticas de gerenciamento diárias.

“Eu cheguei nisso porque eu segui minhas fontes”, diz Rosenthal. “Eu não pretendia entrar nesse campo minado.”


Achou o artigo interessante? De minha parte, fiquei assustado de ter tomado conhecimento do mesmo uma semana após ter escrito uma crônica sobre um mundo futuro distópico onde as pessoas haviam sido reduzidas à mero capital humano. Alguns questionamentos da autora, como “quão cuidadosos temos que ser”, parece até inocente demais frente à crueldade revelada por seu próprio estudo. Ao meu ver, a conclusão que se tira é até que ponto as técnicas atuais não ultrapassam a linha entre ver as pessoas como empregados para vê-las como meros ativos impessoais.

Notas:

[1] A organização econômica dos EUA era fundamentalmente dividida. Os Estados do Norte do país eram baseados em pequenas unidades manufatureiras, no comércio e navegação, não predominando ou mesmo não sendo permitida escravidão. Já nos Estados do Sul do país toda a estrutura econômica girava em torno de grandes propriedades agrícolas, principalmente para a produção de algodão para exportar para as tecelagens da Inglaterra ou do Norte dos EUA, e eram totalmente fundadas no trabalho escravo. Esse regime de exploração do Sul dos EUA lembra os engenhos de açúcar do latifúndio brasileiro. Nos EUA, essa cisão ficou marcada até que a Guerra Civil americana (1861-1865) abolisse a escravidão, com a vitória dos Estados do Norte.
[2] A cisão entre a propriedade e a gestão das empresas é normalmente colocada na literatura como um fenômeno disseminado pelos empreendimentos ferroviários, e que ganha um papel central na organização de quase todos os grandes negócios a partir das inovações da Segunda Revolução Industrial, fundada na eletricidade, na indústria química e do petróleo, e da fabricação em massa de aço, que dariam origem aos automóveis e milhares de outras grandes indústrias que marcariam a história do século XX, daí a ênfase da autora em ressaltar a importância dessa forma de gerenciamento onde os proprietários-acionistas estão separados da gestão direta dos negócios.
[3] Sem sombra de dúvida o exemplo clássico dessa aplicação no século XX é nos métodos de gestão de Taylor, levados a cabo na indústria de Henry Ford, que chegava a pesquisar como seus trabalhadores usavam seu tempo livre, prezava pelo moralismo para que evitassem o álcool que reduzia os níveis de produtividade do trabalho. Ford chegou até mesmo a criar a “Fordlândia” aqui no Brasil, que nesse caso foi um fiasco. Esses elementos eram percebidos em países europeus como fenômenos culturais singulares dos Estados Unidos, mas que mais tarde começaram a se generalizar pelo mundo com a grande indústria.
[4] Ou toneladas por quilômetro útil, TKU. É uma unidade que mensura o esforço físico. A produção em TKU é obtida multiplicando-se a tonelagem transportada pela distância percorrida.

Doutor em Economia, professor do Insper e pesquisador do IDP-SP. Sócio e CEO da AED Consulting. Desde 2013 faço divulgação científica neste blog e nas redes sociais por paixão e convicção. Defendo políticas públicas baseadas em evidências e os princípios éticos do humanismo secular.

3 Responses to “Os Donos de Escravos e o Gerenciamento Moderno”

  1. Jafar

    É grande Thomas! Muito bem colocado as questões sobre os EUA, mas não podemos esquecer jamais que no Brasil a situação foi pior, bem pior. Não somente pela longa duração do tráfico, como também pela imensa quantidade que chegou no Brasil, representando 40% do total, enquanto nos EUA, se eu não me engano foi 6%.

    Nos livros didáticos e esquemas marxistas até meados dos 80, a economia colonial era dividida em “ciclos econômicos”, Pau Brasil, Cana de Açucar, Ouro, Café… Por detrás disto, está ocultado o “ciclo” mais rentável e duradouro = o do comércio de escravos. Fortunas e Fortunas foram feitas por Portugueses, brasílicos no comércio, gerando os capitais dos principais industriais e bancos do XIX, inclusive o do Banco do Brasil.

    E hoje, estamos tão diferentes assim? Me sinto sempre mal em comprar um produto chinês/Bangladesh (etc)… Não estamos financiando “ativos do capital humano” da repressão/exploração chinesa? Sei lá!

  2. Nilson Oliveirz

    Excelente post. Comentários profundos. Esse tema realmente afeta a quem pensa na Economia incluindo principalmente o fator humano e da justiça social. Parabéns e obrigado por trazer isso à baila.

    • Thomas Conti

      Olá Nilson, fico muito feliz que tenha gostado do post! Estou aguardando ansiosamente a publicação do livro da autora para postar mais coisas a respeito. Obrigado mesmo pelo apoio! Abraços

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