O artigo desta semana objetiva debater um dos problemas apresentados na imagem abaixo (reconheço que existem vários). Minha motivação para tanto é um longo debate sobre a imagem em um grupo do Facebook, no qual fui apenas observador.
Por onde começar? Primeiro, é importante iluminarmos as principais críticas que podem ser feitas a um conteúdo como esse:
- 1. Evidente viés ideológico; é impossível ser completamente isento, porém há nitidamente um excesso;
- 2. O excesso é problemático por se tratar de obra voltada para uso público potencialmente obrigatório em salas de aula de ensino fundamental, onde infelizmente há pouco questionamento do conteúdo;
- 3. Mesmo dentro de uma visão particular, a visão é também excessivamente maniqueísta[1] quando o problema que aborda é um dos mais complexos possíveis;
Os três pontos dariam muito o que discutir; este artigo será voltado apenas para a crítica do último deles, o ponto 3. A visão de maniqueísta é um problema muito maior do que se pensa, e é um recurso leviano comumente utilizado em debates para fazer argumentos rasos parecerem convincentes. Em geral, o maniqueísta parte do pressuposto de que seu público alvo terá preconceitos ideológicos que corroborarão com o que está expondo, dando sentido a uma linha de raciocínio que na verdade é bem pouco inteligente.
Para evitar que esse artigo incorra no próprio mal que almeja criticar, devo de início mostrar como a exposição maniqueísta e ideológica de problemas complexos não é um problema do caráter de esquerda da imagem que inaugura o artigo, mas sim um problema geral presente nos dois lados do debate contemporâneo. Chamo a atenção para esta capa de livro:[2]
Percebe-se claramente que enquanto a primeira imagem busca colocar todas as luzes na “bondade” do socialismo, a segunda busca iluminar a “bondade” do capitalismo. Contudo, estamos tratando aqui de sistemas econômicos e sociais que abrangem quase a totalidade das relações humanas. A menos que se tenha uma visão muito restrita da natureza do homem, é evidente que qualquer coisa que compete a conjuntos de milhões de seres humanos não é facilmente colocada de um lado ou de outro desses pólos.
Questões preliminares necessárias para uma distinção mais verdadeira entre Capitalismo e Socialismo
A origem da palavra “capitalismo” foi buscada na história pelo renomado historiador francês Fernand Braudel. Seu uso com significado próximo ao que conhecemos hoje data de 1902,[3] isto é, estamos lidando com um conceito extremamente recente. Segundo o autor, seu uso se popularizou no século XX a partir da emergência de um sistema enxergado como seu antônimo, o socialismo representado pela Revolução Russa. Socialismo e Capitalismo são, portanto, indissociáveis entre si. O conceito de socialismo, por sua vez, é anterior ao de capitalismo e vem dos escritos de Saint-Simon (1760-1825).
A organização econômica sob bases capitalistas, contudo, é um fenômeno muito anterior à sua conceitualização teórica. Na extensa historiografia econômica sobre esse problema, há relativo consenso de que as bases para o capitalismo emergiram por volta dos séculos XV-XVII, a partir da crise do Feudalismo (sécs. XIII-XIV) na Europa. Mesmo historiadores liberais como Michael Mann são categóricos ao afirmar que o novo sistema não foi fruto da ação individual ou premeditada de nenhum agente ou classe, mas um resultado fundamentalmente imprevisível de diversas tendências e contra-tendências presente nesse período, ou especificidades presentes na estrutura europeia de sociedade[4]. Na historiografia desse estudo, é em geral aceito que apenas no século XIX, quando a indústria passa a ser a forma dominante de organizar a produção, que o capitalismo está realmente consolidado enquanto forma de organização social.
Já o socialismo parte da ideia de não ser um resultado inconsciente de diversas interações, mas uma tentativa de superação pela razão, ponto enfatizado nas críticas feitas por Marx, pois a proposta socialista seria não a de um sistema construído pelo devir através de séculos, mas um sistema colocado em prática conscientemente através de uma organização deliberada da sociedade. Isso só seria possível através dos novos avanços intelectuais e tecnológicos desenvolvidos pelo sistema capitalista. Daí para frente, o objetivo almejado pelo novo sistema seria manter a eficiência tecnológica da sociedade que o antecede, porém generalizá-las e redirecionar seus fins para reduzir ou eliminar as mazelas criadas pela organização capitalista da produção.
A tensa relação entre Teoria e Prática
Existem diversas perspectivas distintas sobre o capitalismo, contudo não houve em seu processo de constituição uma “Teoria do Capitalismo”, que continua não existindo em ampla aceitação. Podemos esboçar alguns princípios sejam comuns a todas as visões, como a centralidade da propriedade privada e do mecanismo de ajuste de preços via mercado para orientar os indivíduos. Como mostra a figura abaixo, interpretações mais abrangentes acabam sendo incompatíveis uma com as outras, gerando diversas perspectivas diferentes sobre o problema.
Em 1919 o jovem pensador e então comunista Karl Popper veria-se angustiado para com os princípios do socialismo. Ao ver operários sendo mortos pela polícia em um protesto pacífico, e sendo ele uma das cabeças organizadoras do protesto, sentiu-se moralmente responsável por defender uma teoria que acabou levando algumas daquelas pessoas para uma demonstração em que acabaram morrendo.
Acontecimento trágico, porém o problema teórico encontrado por Popper não seria evidente para alguém que estivesse na posição do delegado responsável pela ação policial naquele caso, ou até mesmo de um observador neutro no protesto. Enquanto, segundo ele, os comunistas acreditavam seguir certa base teórica, devemos ponderar que o sistema contra o qual lutavam era nada menos do que o regime já constituído, que não foi nem é resultado pensado de qualquer teoria. No século XX e XXI, a base capitalista já está operando, de forma que para que esta se reproduza basta o comportamento habitual e não questionar muito as ideias vigentes. Assim como a maior parte dos capitalistas do algodão durante a revolução industrial britânica não tinha contato algum com a elite do país nem a erudição para conhecer Adam Smith ou os princípios da economia política clássica[5], os governantes, empresários e, no caso de Popper, os policiais não estão seguindo uma “teoria capitalista”. Estão apenas defendendo violentamente o padrão habitual contra potenciais tentativas de mudança. De forma análoga, para ser um empresário não é estritamente necessário estudar economia, muito menos ser simpático ao que disse Ludwig Von Mises, basta saber algo de administração. Ou nem isso: um sujeito pragmático sem qualquer estudo formal em vários casos também pode dar conta da gestão de uma unidade produtiva privada.
Mas esses são apenas alguns dos problemas inerentes que enfrentamos ao tentarmos entender o próprio sistema em que estamos inseridos, ou tentar encaixá-lo em alguma definição teórica.
No caso do socialismo, o problema é de outra ordem: não a justificação ou definição do que é a organização social atual, mas sobre o que gostaríamos que ela se tornasse, e como. Evitando controvérsias, objetivos consensuais socialistas seriam reduzir ou eliminar a desigualdade social, eliminar a pobreza, e usar ganhos de produtividade para reduzir o tempo de trabalho das pessoas, aumentando o tempo livre. Contudo, logo vemos o problema: as visões sobre o socialismo divergem não apenas sobre possíveis objetivos finais mais amplos da nova sociedade (opinião sujeita a todo tipo de variação conforme o gosto do pensador), mas também e principalmente sobre os meios pelos quais seria mais justo ou possível atingir essa nova organização social.
Enquanto para entendermos o capitalismo em tese estamos olhando para o mesmo objeto, a sociedade atual e presente – ainda que sob diferentes perspectivas, algumas mais alienantes do que outras -, no caso do socialismo continuamos com a possibilidade de diversas perspectivas diferentes, agora de crítica à sociedade atual, mas soma-se o problema de que o objeto final desejável para o qual olhamos nem sempre é o mesmo, pois está no futuro, não no presente. Mais espaço para divergências e controvérsias. Não por menos, é conhecido que na maior parte das vezes os maiores inimigos críticos da esquerda política são da própria esquerda, que se divide em uma enorme variedade de partidos e movimentos, cada um com suas particularidades. Ao longo da história, esse problema resultou mais de uma vez em graves rupturas.
Na hora de passar os problemas teóricos do socialismo para a prática, todo tipo de empecilho pode surgir. A proposta socialista de reorganização social pode chegar em escalas enormes que colocam grandes desafios para todos. O comportamento habitual é incapaz de resolver esses problemas.
No caso do capitalismo, na prática a amistosa relação entre riqueza e poder em uma sociedade profundidamente desigual gestou ao longo da história as mais variadas formas de injustiças, guerras e miséria. A indagação feita por John Stuart Mill também permanece tão atual quanto o era em 1848: “Destarte é questionável se todas as invenções mecânicas já feitas aliviaram a labuta diária de qualquer ser humano” (John Stuart Mill, “Princípios de Economia Política”, 1848. Livro IV, Capítulo IV).
O despropósito maniqueísta
As poucas questões que coloquei já são suficientes para sempre turvar qualquer debate que busque uma saída positiva para o conflito capitalismo versus socialismo. Contudo, se aceitarmos a natureza tensa dessa oposição, de imediato desabam os esforços de apresentar uma visão demasiada romântica dos problemas inerentes a cada um dos sistemas e das barreiras que verdadeiros defensores de um ou de outro lado devem se propor a resolver.
Mário Schmidt, ao já expor o Socialismo como tudo do melhor, peca contra a própria causa socialista ao não trazer nenhuma posição crítica que um socialista deveria ter; no lugar dessa visão, oferece apenas uma dicotomia romântica.
Hans-Hermann Hoppe faz o mesmo para com o Capitalismo. Ao definir como inerentemente capitalista elementos como a paz, a ética, a liberdade e o progresso, está potencialmente impelindo leitores que queiram uma sociedade assim para um julgamento apologético da realidade que o cerca, quando na verdade esta é permeada de controvérsias e problemas. Se o autor busca angariar defensores do “Capitalismo”, esse conceito geral e impreciso, ele conseguirá. Se, por outro lado, seu objetivo for caminhar para uma sociedade com as características que ele retrata (justa, pacífica, ética, livre, progressista), então de certo ele também está agindo contra sua própria causa.
Concluindo, minha opinião é a de que não há caminho rápido e muito menos indolor para resolver os problemas da organização econômica e social da humanidade. Tirar os pés da realidade, fazer apologias, esvaziar o pensamento crítico, “maniqueisar” problemas complexos, escolher antecipadamente quais os problemas que não se quer ver, sempre resultará em mais um passo para trás na tarefa de realizar uma sociedade mais justa.
Notas:
Caro Alípio, os conflitos que você colocou passam por diversos pontos diferentes e amplos, fica difícil para mim pensar que tipo de referência bibliográfica daria conta de abordá-los. Ainda assim, arrisco recomendar o abrangente e sintético livro de Immanuel Wallerstein, “Capitalismo Histórico e Civilização Capitalista“. Wallerstein é um sociólogo e historiador que não deixa de apontar nem os dilemas enfrentados no desenvolvimento do capitalismo nem os dilemas das tentativas de superá-lo ou derrubá-lo. Em termos de expor o problema geral dos conflitos e ajudar a entendê-los, esse livro foi o mais contundente e incisivo que li até o momento. Quanto à contradição que você viu nesse congresso, de maneira geral penso que ela estará presente em qualquer organização política partidária ou que se coloque na busca do “acúmulo político”. Para uma visão crítica sobre esse problema, recomendo um livro que eu mesmo ainda não terminei de ler mas que já trouxe vários argumentos críticos e interessantes, “Mudar o mundo sem tomar o poder“, do cientista político John Holloway.
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Se me permite, gostaria de comentar sobre os problemas da universidade que você colocou
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HPE (História do Pensamento Econômico) e HEG (História Econômica Geral) são, como seus nomes sugerem, disciplinas que estão muito atreladas ao estudo da História. Logo, é praticamente impossível um professor pouco versado nos estudos históricos ser capaz de ministrá-las com o conhecimento de causa necessário.
Daí já surgem alguns problemas. Para não me estender vou abordar os problemas que vejo no ensino da HEG, que é a minha área de estudo.
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Em economia, autores como os que você citou (Friendman, Mises) estão muito mais voltados para complementar o estudo da ciência econômica com incursões mais fortes respectivamente na matemática e na filosofia do que na história. Ao não passar textos desses autores em uma disciplina como HEG, não é necessariamente por má fé, pois os trabalhos principais deles de fato não foram voltados para a história econômica. Já os autores marxistas, devido ao próprio método do materialismo histórico, sempre acabam produzindo conteúdo nessa área, por vezes com grande erudição (Eric Hobsbawm, Perry Anderson, Maurice Dobb, apenas para citar alguns).
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No caso da HEG, existem nomes importantes que apresentam uma visão histórica distinta da marxista, contudo tampouco seria fácil ou possível conectar esses autores com visões como a neoclássica ou a austríaca. O conflito nesse caso está mais próximo da área da história, principalmente entre o materialismo histórico e a concepção weberiana das esferas de influência e dos tipos ideais, do que da economia e, como hoje nosso ensino preza pela especialização, colocar esse debate por vezes seria uma tentativa julgada como externa aos objetivos do curso. Para apresentar o debate inteiro das visões distintas na história econômica geral, poderia-se ainda adicionar: a visão pós-moderna da história das pequenas coisas; a “grande história” da visão da economia-mundo ou sistema-mundo de Braudel, Arrighi, Gunder-Frank e Wallerstein; ou ainda a visão da cliometria, de autores como Patrick O’Brien e Leandro Prados de la Escosura, essa última sim pelo seu método talvez se coloque mais próxima do que seria uma interpretação neoclássica da história econômica, ainda que os próprios economistas neoclássicos não recorram a ela para embasar qualquer uma das suas teorias.
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Enfim, o debate é longo e na graduação dificilmente há tempo para ler três textos sobre o mesmo acontecimento ou período histórico. Caberia ao professor passar uma leitura da visão que acha mais rica ou pertinente, mas fazer referência a argumentos das outras perspectivas para os alunos terem uma noção do debate e serem capazes de enxergar o problema de forma mais ampla, buscando por conta própria as referências caso tenham interesse. Considero-me um estudante de sorte pois tenho aula e sou orientado por um mestre que possui esse nível de erudição e comprometimento crítico. Mas podemos ver que não é nem de longe o caminho mais fácil a ser percorrido.
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Concluindo. Ao meu ver, o maniqueísmo não pode ser entendido apenas como um problema intelectual de recurso romântico dessa ou daquela vertente política, mas sim também, na sua faceta material, como uma resposta pragmática: dada a complexidade do problema de determinados assuntos, o maniqueísmo se apresenta como o caminho de menor esforço. Nesse sentido, lutar contra o maniqueísmo é também lutar contra a mediocridade. Se olharmos para o nível geral das opiniões esquerda vs direita hoje no Brasil, vemos uma direita desorganizada, sem força política (grande crise do PSDB, novos partidos surgindo), e uma esquerda que, na falta de uma opositores fortes e expressivos, não raro já se julga superior apenas por ser de esquerda. Daí parte da explicação para o desânimo de muitos com a participação política no nosso país, e a liberdade que isso dá para discursos rasos passarem sem contestação, ou com contestações tão rasas quanto as exposições que buscam criticar. Não quero dizer que seja esse o caso dos professores que você teve, pois nem sequer os conheço, mas a tendência geral existe…
Muito obrigado pelas dicas.
Não foi nada, espero que as referências sejam úteis. Peço desculpas pela resposta longa e cheia de opiniões para além do que foi perguntado… Como estou estudando para ser acadêmico em história econômica, acabei empolgando-me com as suas reflexões! Valeu pelo comentário, Alípio. Abraços
Quê isso, suas reflexões e suas abordagens foram ótimas no que diz respeito ao esclarecimento de várias indagações que eu tenho. Muito obrigado.
Olá Tomas, tudo bem?
O tema que você aborda é de meu interesse pessoal há pelo menos uns 15 anos. Coincidentemente, estou finalizando um trabalho que vou apresentar no mestrado da UFRGS em educação sobre ideologia no livro didático, abordando exatamente um livro da coleção Nova História Crítica.
Vou ler seu arigo e os comentário para participar do debate, ok?
Abraços e até,
Enrique
Olá Enrique, tudo certo?
Acharia genial ouvir o que você tem a dizer sobre esse assunto, participe sim! Também tenho interesse pelo tema da sua dissertação, se puder passar a referência também, agradeço!
Abraços,
Thomas Conti
Olá Thomas
Eu gostei do texto, achei muito bom. No entanto eu tenho uma dúvida. Você disse que a origem da palavra “capitalismo” em seu uso com “significado próximo ao que conhecemos hoje” é de 1902. No entanto Marx utilizava esta palavra já na primeira metade do século anterior, e ele deu a ela uma caracterização que permanece sendo utilizada pelos marxistas, ou estou engando?
Olá Lucas, essa é uma pergunta ótima e que toca em uma ferida aberta da nossa memória social: nossa tendência de projetar noção modernas no passado. Na verdade Marx nunca usou o termo “capitalismo”, ainda que possivelmente ele o conhecesse, pois em 1854 um escritor britânico chamado William Makepeace Thackeray usava a palavra pela primeira vez no seu livro de ficção “The Newcomers” – nessa época, Marx vivia na Inglaterra e era profundo conhecedor tanto do pensamento político quanto literário de seus contemporâneos, de modo que é razoável supor que nos 13 anos entre o livro de Thackeray e a publicação de “O Capital” ele tivesse entrado em contato com o termo.
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Contudo, na edição original de “O Capital” publicada em 1867 em alemão, o termo aparece apenas uma vez em toda a obra (comparado com mais de mil referências ao “modo de produção capitalista”). Nos Volumes II e III de O Capital, terminados por Engels, a palavra mais algumas poucas vezes, sem grande ênfase. No século XX algumas edições posteriores da obra acabariam contendo a palavra uma ou outra vez, também por influência da União Soviética e do pensamento marxista lá produzido. O uso extensivo do termo significando um sistema amplo de produção aparecia realmente em Sombart em 1902, e Weber em 1904 com “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” selaria de vez o significado usual do termo, que deixaria a esfera dos círculos intelectuais e acadêmicos para o uso mais recorrente na língua falada após a Revolução Russa instalar um sistema produtivo distinto em oposição ao capitalista, deixando nítido, por comparação, algumas singularidades do “capitalismo”.
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O termo preferido por Marx era “Modo de Produção Capitalista” (a palavra “capitalista” é pelo menos 150 anos anterior à palavra “capitalismo”, precisaria retomar o livro de Braudel para citar a data exata). Além de ser um conceito bastante preciso do ponto de vista do rigor filosófico característico de Marx, era também mais coerente com a análise do autor sobre os modos de produção anteriores – coisa que a generalização “capitalismo” dificilmente permite. Para efeitos práticos do debate contemporâneo, tanto para o marxismo quanto para nós que em geral estamos distantes desse mundo do rigor conceitual dos filósofos, é extremamente comum tomar “modo de produção capitalista” como sinônimo de “capitalismo”. Se formos discutir a etimologia da palavra, contudo, distinguir os dois acaba sendo necessário, uma vez que Marx usou apenas o primeiro conceito, de modo de produção.
Olá Enrique, peço desculpas pela demora em responder. Seu comentário é excelente e reitero o pedido da referência da sua dissertação, é nítido o domínio que vc tem do tema.
Vamos ao tema. Acho que você tocou nos principais pontos com muito mais propriedade do que eu seria capaz de fazer, então vou encaminhar mais diretamente meus comentários para o seu último ponto, sobre o problema dos professores e a relação disso com ideologia e ensino.
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Em geral eu concordo com a afirmação de que não existe discurso neutro, porém também concordo com todas as ponderações aos discursos excessivamente ideológicos. Acredito que a raiz do problema seja uma só: não há, a não ser por extrema sorte e acaso, qualquer estímulo por parte do nosso sistema de ensino atual em oferecer uma visão plural da realidade. É verdade que diversos professores e intelectuais carregam um viés ideológico, porém eu diria que não compõe a maioria os bons e dedicados que chegam ao ponto de dominar o pensamento e o raciocínio de mais de uma vertente ideológica ao ponto de defender a sua sendo verdadeiramente desonesto, omitindo ponderações frente a seus rivais.
Ao meu ver o que ocorre é que tanto pela especialização das áreas da ciência quanto pelas restrições que são colocadas àqueles que buscam justamente um diálogo é que, por mera reprodução da mediocridade, acabamos nos vendo em uma situação onde pouquíssimas pessoas realmente são capazes de reconhecer os próprios excessos e a inteligência do oponente.
Partindo dessa discussão que me considero, até que me provem uma proposta contrária, defensor da ideia de que um ensino não-maniqueísta ou não-apologético consistiria não em um que busque a neutralidade da descrição ou a neutralidade dos fatos, mas um que mostre tanto um lado quanto o outro, faça o diálogo entre eles e deixe para os leitores/ouvintes/alunos o julgamento e as referências para que se aprofundem nessa ou naquela vertente interpretativa. Isso não é possível em todas as disciplinas, mas certamente é possível em História – que é a geradora e a maior responsável dessa memória social distorcida – e decididamente em áreas como Economia.
Forte abraço,
Thomas Conti
Diga lá Thomas, eu também peço desculpas por esse atraso na resposta.
Bem, vamos lá…
Acredito que a questão que você aponta, sobre a falta de estímulo de uma visão plural da realidade no sistema de ensino, decorre da proliferação do pensamento sectário das pessoas que formam e constroem a universidade.
É bastante difícil mudar esse cenário, Thomas, porque quando se procura debater as questões de forma menos dicotômica e parcial, as pessoas tomam como ofensa pessoal as críticas à visão dicotômica e parcial.
Isso porque as pessoas, principalmente, no meio universitário, constroem suas carreiras juntamente a partir de sua visão de mundo. Logo, aquele professor “é de uma linha de pensamento”, o outro professor “defende determinada visão”, etc. Não é assim? Quantas vezes, ouvimos essas definições pelos corredores da universidade?
Logo, quando você debate com esses professores, eles se preparam para um tipo de combate. Como você mesmo diz, Thomas, eles omitem “ponderações frente a seus rivais”…. é exatamente isso: as pessoas acreditam que o “outro” é o seu rival.
Entendo que no meio universitário essa combate entre rivais só tem aumentado, Thomas. Por isso não acredito que a maioria pensa de forma contrária. Na verdade acredito que uma minoria pensa de forma contrária. Sabe por quê?
Porque as pessoas mesclam vida pessoal (maneira de ver o mundo) com vida profissional (professor, aquele que ensina), principalmente, no meio acadêmico pela própria natureza do trabalho.
Criticar uma ideia sectária implica, para essas pessoas, criticar tudo em que ele acredita. E mais. Implica criticar todo seu caminho como profissional e todos os anos que fizeram dele o que ele é: “aquele professor que tem aquela linha de pensamento”, “aquele professor que pensa daquela maneira”, etc.
Eu acredito que esse cenário pode ser minimizado, quando as pessoas que constroem o sistema de ensino e, especificamente, a universidade passarem a se confrontar, cada vez, com pensamentos contrários.
Acredito que esse é um dos principais papeis do aluno. Sim, porque, a universidade não é construída apenas pelos professores, administradores, funcionários, burocratas e planos de ensino, mas, principalmente, pelos alunos. São para eles que o sistema de ensino existe.
Quanto mais houver alunos defendendo pensamentos contrários, mais os professores e os demais alunos poderão enxergar que há outras formas de pensar e agir.
Grande abraço
Enrique.
[…] após a leitura estiver em duvida sobre o significado de capitalismo, talvez esse outro post possa ser utíl. Estou redigindo um post embasado nos debates de história econômica para retomar o problema da […]
Thomas,
Sou formado em História Licenciatura UFAL. Eu pergunto a vc: Por que alguns professores que se baseiam em certo autor para discutir uma linha de pensamento, ficam contrariados quando emitimos opiniões não contrárias, mas diferentes ao tema discutido e chegam até a hostilizar o aluno por não concordar com o autor? Qual a sua opinião a respeito dessa atitude, vc acha isso uma certa forma de alienação?
Olá Marcos,
Para mim só existem dois motivos pelos quais um professor agiria dessa forma: (1) má fé; (2) falta de confiança/capacidade intelectual para manter suas posições num debate racional. Do ponto de vista do ensino que está sendo passado, sem dúvida um professor que age dessa forma está contribuindo de um jeito ou de outro para a “alienação” dos alunos em um sentido muito preciso: quem concorda com o professor estará no geral ouvindo argumentos repetitivos e pode até pensar que aquela é a “única verdade”, e quem discorda do professor pode também achar que está certo simplesmente porque o professor não respondeu aos questionamentos de forma satisfatória – o fato daquele professor em particular não ter conseguido responder sem usar a autoridade, no entanto, está longe de significar que nenhum professor seria capaz de fazê-lo, e menos ainda de que não existiriam informações suficientes por aí para embasar esse debate. Assim, professores autoritários formam alunos despreparados de ambos os lados da argumentação.
Do ponto de vista do próprio professor, ao menos na faculdade, não engulo essa de que existam professores alienados. Existem professores mais ou menos bem preparados, professores mais ou menos curiosos, professores mais ou menos dispostos a entender e debater com a outra posição, porém todos eles têm uma ótima noção do quão parciais estão sendo em cada argumento. O que já seria mais provável é que durante toda a formação deles tenham entrado em contato apenas com professores autoritários, e seus exemplos de bons professores tenham sido “gênios eruditos” que mandavam todo mundo que discordasse calar a boca. Enfim, questões políticas e perspectivas sobre o conteúdo ministrado facilmente se misturam com problemas de despreparo pedagógico e uma tendência a assimilar o ensino autoritário legado pelos professores da geração anterior. Quebrar essa corrente é fundamental, mas para mim isso começa na necessidade de ensinar pedagogia para o professor antes de colocá-lo numa sala de aula. Apenas marretar as ideias da ideologia oposta não vai surtir qualquer efeito diante de um professor que não sabe lidar com a oposição e tem autoridade suficiente para se blindar de qualquer crítica. Ao menos é o que eu penso.