“[Procuro] apenas lançar um pouco de luz sobre a vida de homens do povo que, em minha terra, tanto trabalharam em prol de uma nobilitante aspiração e que tão esquecidos até agora permanecem…” – Antônio Manuel Bueno de Andrada, “A Abolição em São Paulo: Depoimento de uma Testemunha”, Jornal Estado de São Paulo, 13 de maio de 1918.
A citação que inaugura o post de hoje é bastante elucidativa de um problema educacional brasileiro: a formação de nossa memória coletiva. Já em 1918 Antônio Manuel denunciava o esquecimento em que se caíra a luta realizada por milhares de homens e mulheres, brancos e negros, para abolir definitivamente o regime da escravidão em nosso país. Se esse esquecimento já era patente em 1918, hoje é seguro dizer que essa luta passa por desconhecida pela população em geral. A fábula da “canetada da princesa” que de cima para baixo e sem qualquer luta popular aboliu a escravidão foi a memória vitoriosa.
Cabe mostrarmos um pouco dessa memória que se perdeu. Em 1972, Ronaldo Marcos dos Santos defendia na USP sua dissertação de mestrado intitulada “O Término do Escravismo na Província de São Paulo (1885-1888)”, onde através de dezenas de artigos de jornais e periódicos da época da abolição consegue reconstituir parte da batalha dos escravos e de outros homens que tomaram a causa abolicionista como suas.
Os principais nomes levantados pela autor foram Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio, Luís Gama e Antônio Bento de Souza e Castro, que compunham a “Confederação Abolicionista” do Rio de Janeiro e posteriormente viriam para São Paulo defender a abolição.
As condições do escravismo antes da abolição
Apenas um ano antes da Lei Áurea, eram ainda contabilizados por volta de 100.000 escravos na Província de São Paulo, compondo um percentual muito significativo de sua população total. O que nem sempre é dito é que em apenas um ano, nas vésperas da “canetada” da princesa Isabel, esse número já havia sido reduzido para menos de 20.000 escravos! Fugas em massa das fazendas, intrusões do movimento abolicionista e o apoio geral da população civil e até do exército às deserções dos escravos somaram-se para minar qualquer apoio que os senhores de escravos pudessem obter.
Através da publicação de dois jornais em 1864-1866 estaria lançado o mote do movimento abolicionista: “Um Brasil sem rei e sem escravos”. Expressava o sonho da República e o sonho da Abolição. A fase “militante e revolucionária” pela emancipação dos escravos começava em 1879 com Joaquim Nabuco, ao romperem-se alianças com elementos menos convictos na causa abolicionista.
As rebeliões dos negros
Durante toda a escravidão no Brasil houve fuga dos negros buscando a liberdade.
Contudo, esse era um movimento dificílimo de ser realizado. As principais armas do negro eram três: 1. a rebelião individual, que vez ou outra obtinha sucesso na fuga de poucos escravos; 2. as rebeliões coletivas, que ao longo dos séculos foram diversas vezes frustradas por informantes que denunciavam a organização dos negros; 3. por fim, o escravo podia fugir para comunidades quilombolas onde vivia como livre, embora com as leis vigentes jamais poderia ser considerado livre e estava condenado a uma vida reclusa envolvendo pilhagens e fugas da polícia, ainda que normalmente essas comunidades criassem vínculos de troca com aldeões próximos.
Ainda que representasse uma pressão permanente a favor da mudança, a organização escravista da sociedade era arraigada e cruel demais para ser destruída apenas pela luta dos escravos, que, apenas para citar uma dificuldade, não conseguiriam mudar a opinião da mídia sozinhos. Foi através da soma dessas forças de resistência do negro com a mobilização de pessoas e da opiniões popular a favor da causa abolicionista que a busca dos escravos pela liberdade foi cada vez mais capaz de romper o nefasto tecido social do regime escravista.
O movimento abolicionista: Propaganda e Agitação
Podemos discernir duas fases no movimento abolicionista paulista. A primeira foi capitaneada por Luís Gama, também precursor geral do movimento, ele próprio negro, filho de pai português e mãe africana. Gama era advogado e patrono gratuito das causas a favor da liberdade dos escravos. Encontrava artifícios jurídicos para reduzir o custo das cartas de alforria; após uma batalha jurídica onde conseguiu a liberdade de 200 escravos, ganhou notoriedade e aos poucos conseguiu expandir seu círculo de influência juntando outros advogados, servidores públicos, militares, e pequenos agricultores, que colaboravam com a causa ou em dinheiro ou oferendo-se para acobertar escravos fugitivos.
Morreu em 1882. A partir daí movimento se centrou em torno de Antônio Bento, que os reuniu e aproveitou o aumento do número de pessoas disposta a ajudar no acolhimento dos cativos, organizando-os em torno de uma Confraria. Aos membros mais corajosos e audazes era dada a tarefa de promover fugas de escravos das fazendas. Eram chamados de caifazes. Amparavam e guiavam os escravos pelos caminhos mais seguros até atingir a Capital ou o Porto de Santos. Seu trabalho, evidentemente clandestino, não foi relatado na imprensa da época, daí boa parte do problema de registrar esse movimento.
Os anos de 1885 a 1888 foram marcados pela radicalização das facções escravocratas e abolicionistas, iniciada por ocasião dos debates em torno da lei dos Sexagenários no final de 1885. Toda a nação é envolvida no movimento e os campos de luta se estendem a todas as áreas possíveis: o Parlamento, a imprensa, as associações abolicionistas, os teatros, os encontros em praça pública, as estações de estradas de ferro e principalmente as fazendas de café.
A lei deixou claro para os abolicionistas que teriam de fazer um movimento mais forte para encerrar de vez a escravidão. Através da propaganda e da agitação, promoveram e apoiaram o abandono das fazendas, forçando os senhores a libertar os escravos ante a ameaça da “desorganização do trabalho”.
A Resistência escravocrata
“O Barão de Cotegipe, na sua desesperada resistência à onda invasora do Abolicionismo, que começava a submergir São Paulo, pensava, até, na decretação de estado de sítio para aquela Província. Comunicara reservadamente, ao Presidente Barão de Parnaíba, em setembro de 1887, a ida de uma canhoneira ao porto de Santos, com o fim de recolher os escravos ali acoitados e, juntamente, alguns dos mais notáveis agitadores abolicionistas, conduzindo-os à capital do Império.” – Evaristo de Moraes, “A Campanha Abolicionista (1879-1888), Livraria Editora Leite Ribeiro, Rio de Janeiro, 1924. Citado em Santos, p. 3.
Conforme continua a dissertação de Ronaldo, a resistência escravista concentrava-se então no oeste campineiro, área onde se incremental a agitação abolicionista para desorganizar o trabalho servil. Os senhores de escravos tinham duas opções: reforçar todos os mecanismos de repressão e opressão que tinham disponíveis, ou tentar manter o controle sobre os negros através de concessões de liberdade. Diversos senhores formaram associações para contratarem forças armadas pessoais para reprimir a fuga de escravos e a interferência dos abolicionistas “agitadores da ordem”. Contudo, por volta do segundo semestre de 1887, a administração da província passaria a negar aos senhores de escravos o auxílio e os recursos policiais de repressão ao abolicionismo, uma vitória inestimável do movimento abolicionista.
O Fim da Escravidão
“A partir de fevereiro começam a chegar as comunicações de municípios livres: Tietê, Indaiatuba, Rio Claro, Araras, São Roque, Una, Sorocaba já não possuíam nenhum escravo. Parece instalar-se na província um clima de competição entre os diversos municípios para ver quais deles conseguem mais rapidamente a libertação total. Cada cidade constitui uma comissão para consultar o livro de matrícula de escravos, ver quais os senhores retardatários que ainda não deram baixa e procurá-los para que o façam. As últimas reuniões de fazendeiros noticiadas são geralmente convocadas por estas comissões e nelas se marca a data da libertação final e dos festejos comemorativos.” – Ronaldo Marcos dos Santos, p. 107.
Essa citação de Ronaldo deixa claro: as forças abolicionistas haviam ganhado a batalha pela alteração da consciência acerca da escravidão, a opinião popular não mais seria conivente com os abusos levados a cabo pelos senhores de escravos. Em poucos anos, a escravidão caía de pilar do Império a uma herança do passado.
Comentários finais
A história da abolição da escravidão no Brasil é fascinante e não teria tomado conhecimento dela se não fosse a ocasião de uma aula em que o próprio professor Ronaldo Marcos dos Santos, autor da dissertação que tentei expor brevemente nessas poucas linhas, participou como professor convidado. É uma pena que o conhecimento da luta de heróis acabou se perdendo pelo tempo; ver as dificuldades que passaram e as várias frentes de luta que tiveram de abraçar até finalmente terem sua causa declarada vitoriosa. E já tinham-na praticamente conseguido antes da Lei Áurea, que devíamos entender mais como uma lei que colocava no papel mudanças já fortes na sociedade, do que a verdadeira autora dessa grande luta. Essa batalha é no mínimo uma imagem inspiradora, elemento tão faltante na memória social e histórica do brasileiro.
Diversas citações impressionantes acabaram ficando de fora deste pequeno artigo. Dos sujeitos da época, abolicionistas e escravocratas, bem como opiniões de jornalistas nos jornais, mas para estas recomendo a leitura do livro original, “Resistência e Superação do Escravismo na Província de São Paulo (1885-1888)”, onde certamente os fatos estão mais bem expostos do que aqui.
É fundamental reavivarmos as partes de nossa história que podemos nos orgulhar. A abolição da escravidão foi uma delas.
[…] assim como eu) os momentos que precederam a tão falada abolição. Como bem lembrou o blogueiro Thomas Conti, as agitações, revoluções e revoltas já tomavam conta do Brasil de oitocentos e diversos […]
[…] assim como eu) os momentos que precederam a tão falada abolição. Como bem lembrou o blogueiro Thomas Conti, as agitações, revoluções e revoltas já tomavam conta do Brasil de oitocentos e diversos […]